Na mesma hora, em um hotel não muito longe da catedral e próximo ao centro da cidade de Łomża, acabara de acordar um homem novo, bonito e cativante. Lavou as mãos na pia das estalagens simples e passou a mão pelo sobretudo negro, que usava por cima das vestes também da mesma cor. Recebeu no quarto um singelo café da manhã, contemplando o sol que nascia tímido no horizonte.
-Obrigado, senhor, volte sempre. – O recepcionista pegou nas mãos que um
dia estiveram sujas.
-Fique com Deus. – O homem de negro saiu, deixando um ar místico no
lugar. Andava tranquilamente por entre as ruas de pedra do centro histórico da
cidade.
Naquele dia, todavia, o jovem não entrou em lugar nenhum. Seguiu
caminhando e rodeou a igreja, esquivando-se de alguns policiais que analisavam
a catedral, indo diretamente à casa paroquial, decidido. Contornou o perímetro
de um pátio sossegado atrás da construção, passando a mão nos bancos cobertos
de neve, limpando a sujeira por entre os dedos ásperos.
Um daqueles policiais tocou-lhe no ombro com cordialidade.
-Padre! O senhor não pode prosseguir, infelizmente. – Seu coração pulou
de susto.
-Céus, você realmente me assustou. – Riu, desconfiado. – O que aconteceu
por aqui? – Olhou para o horizonte e para o resto das pessoas que estavam à
frente da catedral.
-Bem... – O homem da lei buscava as palavras polidamente. – Houve uma
morte no altar da igreja. – E viu a boca do pároco abrir-se em forma de “o”.
-Meu Deus! Blasfêmia! – Gritou, fingindo um atordoamento.
O policial riu disfarçadamente e segurou a pistola de forma instintiva,
vendo que deixara o padre constrangido. Deu meia-volta e tentou sair de
soslaio. Foi contido por ele.
-Deixe-me ao menos ver como está nossa igreja... – Sorriu com meia-boca.
O agente abriu as portas para o padre e ambos entraram na catedral pela
porta da frente. Os outros religiosos foram logo em seu encontro, ainda
enclausurados. Frei Emmanuel, um religioso atarracado e de cabeça pelada,
passava de lá para cá, agitado com as mãos no ar, balançando como loucas.
Cônego Hanz Blaun, um pouco mais controlado que os outros, cumprimentou o jovem
padre e o policial; que logo se afastou entretido com um donut.
-A graça de Deus, padre... – Viu Hanz voltar-se aos outros após ter
saudado o recém-chegado. Frade Abraham Markus, o frei Emmanuel Pigosy e os
padres Mats e Aciel, ambos novos e muito parecidos, conversavam com fervor. –
Cheguei a pouco e logo soube. – Prosseguiu com um rosto triste. – Quem foi
padre... a vítima?
-Lembra-se de Eva Araz, padre? – Hanz não possuía hesitação na voz, ao
contrário dos outros religiosos. Percebeu que o frei estava com os olhos
vermelhos, e viu uma lágrima escorrer por suas bochechas gordas e oleosas.
-Eva!? Pobrezinha... Uma mulher tão correta e cordial, cristã fervorosa.
– Fez uma pausa dramática. – Sempre a via no primeiro assento durante minhas
pregações e de meu companheiro. – Se dirigiu para perto do outro pároco jovem.
– Não merecia... – Passeou pelo piso de madeira e rodeou o frade, consolando-o.
-Realmente não merecia! – Concordaram em coro os outros.
Isaac não reconhecia mais a cena do crime, horas depois de sair dali.
Parecia ter sido limpa. Na verdade, dois padres jovens estavam ocupados com a
limpeza do lugar. Mats e Aciel seguravam, respectivamente, um esfregão e um
rodo, deixando um balde e um pano de lado para quando precisassem. Mats
arrastou um banco pesado de mogno da fileira da frente, enquanto Aciel
derramava um pouco de água com sabão na tentativa de retirar o sangue coagulado
que ficara encrustado no piso de madeira. Mats finalizou o processo e buscou
uma flanela dentro do balde, passando-a na base do altar, onde antes haviam
respingos de sangue, vendo o doce fluido escarlate desaparecer da pedra.
Isaac praticamente empurrou os religiosos em um instinto policial.
-Vocês estão alterando a cena do crime?! – Ele acabou derrubando Aciel,
que escorregou no piso molhado e atravancou-se ao chão.
O policial logo percebeu a besteira que protagonizou e tratou de se
redimir, estendendo a mão ao jovem no chão, perdido entre as vestes negras e
longas. O pároco se recompôs e se limpou, assim como o fez com a batina e o
cabelo.
-Desculpas, padre. – Olhou bem ao fundo dos olhos azuis de Aciel.
-Amanhã já é domingo. – Interveio Mats com o rosto rubro. – Dia de missa
na catedral. – Foi de encontro ao outro. – Por isso estamos limpando-a.
-Somente se esqueceram de que um assassinato foi cometido aqui,
senhores! – Bateu com truculência na tábua marmórea do altar.
Os dois padres se precipitaram para o detetive e deteram-no impulsivamente.
Contiveram suas mãos e se estranharam com ele, contemplando seus olhos
castanhos e bravos. Obra do destino ou não, Isaac pode perceber uma semelhança
notável entre os dois.
-Espere um pouco. – Estendeu as mãos livres em sinal de estranhamento,
movimentando o ar parado e denso que não circulava dentro da catedral. – Vocês
são...
-Gêmeos. – Ambos responderam em vozes uníssonas.
Realmente, os dois irmãos compartilhavam de mais características em
comum do que qualquer outros univitelinos do mundo. Estampavam o mesmo riso sombrio na face, e
usavam barbas ralas de desenhos semelhantes, além de olhos da cor do mar
caribenho, oscilando entre um azul cristalino e um anil cor de gelo
transparente.
Ficaram os três trocando ofensas silenciosas, enquanto Isaac ficava cada
vez mais desconfiado por dentro. Os três rapazes pularam de susto quando o frei
Emannuel desesperado bateu a porta pesada da igreja, escancarando-a e fazendo
um barulho fenomenal.
-Heresia! Heresia! – Gritava o pároco assustado. – Roubaram minha Bíblia
sagrada!
Os padres se assustaram ainda mais frente à cara enrugada do frei
atarracado e calvo.
-Aquela que ganhou direto das mãos do papa? – Mats levou as mãos à
cabeça em um gesto atônito, abaixando-se para dizer algo ao frade que Isaac não
conseguiu ouvir.
-Venha comigo, detetive. – Emannuel segurou-o pelas mãos e puxou-o
levemente aos fundos da catedral.
Os padres gêmeos largaram o que faziam e andaram logo atrás dos homens
por um corredor pequeno e simples de chão de pedras e parede de tijolos que
efervesciam de bucolismo. Um circuito de lâmpadas incandescentes iluminava a
passagem ao passo que ajudavam a esquentar o ambiente. A luz forte e amarela
invadia os olhos de Isaac e deixavam-nos cansados, ao ponto de as pupilas se
principiarem a fechar em pleno meio-dia. Foi acordado pelo ronco de sua
barriga, tão alto que o frei pulou e desatou a rir. Rir não, gargalhar.
-Está com fome?
Isaac riu e concordou. Todos viraram subitamente em direção a uma
portinhola que tinha aroma de cravos e canela. O local em si era espaçoso e
cheirava a frango ao molho de mel e lentilhas. Uma cesta de pães estava bem
colocada em uma bancada de pedras rústicas, ao lado de outra recheada de maçãs
vermelhas, assim como se encontravam as bochechas do detetive.
O frei assemelhava-se à rolha da garrafa de mel que despejava no molho
que ele preparava: Compacto e careca. Despejou o líquido âmbar na mistura e
mexeu o caldo borbulhante com uma colher de pau.
-Pronto! – O homem atarracado seguiu para uma prateleira que parecia
alta demais para ele e apoiou-se na ponta dos pés para pegar uma dúzia de
pratos de louça; colocando-os próximos ao fogão de lenha. – Servido? – Apontou
ao caldeirão quente e à concha metálica, sorrindo um sorriso engraçado e
quadrado.
-Realmente estou com fome. – Isaac viu o cônego Hanz cofiar as suíças em
sinal de aprovação e seguiu junto a ele para o caldeirão, prestes a
experimentar do melhor frango ao molho de mel de toda a Polônia.
Acabada a refeição, Isaac decidiu ficar para ajudar Emmanuel com as
louças, que não eram muitas, mas suficientes para render trinta minutos de
conversa com o homem espremido atrás da pia.
-Será suficiente se eu enxugar a louça? – O detetive perguntou.
-Claro! Já é de ótima ajuda você os enxugar. – O frei sorriu em
resposta, mergulhando as mãos fofas na água morna. – Modernidades... – Ele
gargalhou e engasgou com saliva.
-Ajuda, frei? – Isaac ficou preocupado, vendo que o homem ficara
vermelho.
-Pode deixar. Volte aos pratos, por favor.
O homem não hesitou em continuar o serviço.
-Então... – Buscou as palavras. – Você a conhecia?
-Madre Carmina? – Virou-se subitamente.
-Não frei. A garota que acharam morta no altar.
O religioso parou o que estava fazendo e correu para enxugar as mãos
sujas de sabão em uma toalha limpa. Apressou-se, curiosamente, e sentou-se
perto de Isaac, que deixara o pano de cozinha de lado e postou-se do outro lado
da mesa redonda.
-Sabe de uma coisa? – O homem chegou perto do ouvido de Isaac e
sussurrou bem baixinho suas próximas palavras. – Eu sei de... – Pestanejou o
homem, coçando a careca e arranhando a área com a ponta das unhas. Engoliu as
palavras junto com saliva.
-Vamos, conte! – Isaac chegou mais perto dele, encostando os ombros nos
ombros dele, e colocando os ouvidos o mais próximo possível de sua boca.
-Eu sei que aquela garota, Eva Blaun, era uma conhecida da noite. –
Parecia envergonhado. – Uma dama tão agradável e que se vendia às vezes por
nada de dinheiro.
Isaac empurrou a cadeira para longe demonstrando surpresa.
-Por Deus, frei! – O religioso pulou de susto. – Está querendo me dizer
que Eva Blaun era prostituta?! – Rodopiou no ar, confuso. Emannuel
precipitou-se para o corredor conferir se não havia curiosos. Voltou e fechou a
porta atrás de si.
-Silêncio, meu senhor. – Pediu em tom de súplica.
-Desculpas, frei.
-Ela vinha se confessar aqui às vezes. Na verdade, de quinze em quinze
dias. Um dia não pude deixar de reparar na expressão preocupada dela. Vou lhe
contar com detalhes sobre a última vez que a vi.
-Claro! – Isaac pegou uma xícara de chá e sentou-se novamente ao lado de
Emannuel. – Conte-me o que aconteceu.
-Ela havia batido a porta pesada da catedral para entrar, chamando-me a
atenção, por isso fui conferir se tudo estava bem. Abri a porta da sacristia
que eu estava limpando e fui vagarosamente me dirigindo para onde eu suspeitara
ter ouvido o barulho.
Isaac ouvia-o, atento aos detalhes.
-Ao chegar bem próximo ao confessionário, vi que ela se confessava com
algum dos padres da congregação. Devido às circunstâncias, não pude identificar
qual deles era.
A posição de Isaac revelava o seu interesse na situação.
-A igreja estava escura, já se passavam das cinco da tarde. Ela desceu o
véu negro e começou a falar: “Não, seu
covarde, isso não pode! Não vais me deixar assim.” E ela bateu com força as
mãos na parede do confessionário. O padre lá dentro parecia não se importar com
a situação. Se eu pudesse ver seu rosto, diria que estava com um sorriso
gravado nele. “Você há de me dar o que
mereço legalmente!” – O frei parou o depoimento extraoficial. – Fiquei
estarrecido, sem prestar atenção no que poderia vir depois.
-E ai? – Isaac estava boquiaberto com o relato que ouvia.
-Saí da sala.
-Como assim saiu?
-Saí. Dei meia-volta e fechei novamente a porta da sacristia. De lá não
pude ouvir mais nada.
-Não acredito. Não acredito, frei Emannuel! Você simplesmente largou a
conversa quando estava mais interessante!
O homem atarracado sorriu envergonhado.
-Tive de fazê-lo. Um religioso não pode ser tão curioso a ponto de tal
ato. – O frei voltou a seus pratos.
-Entendo sua posição, contudo, não poderia tê-los deixado conversar
sozinhos. Vê no que deu? Agora temos o resto da congregação como suspeita.
-O que não é muito, porém já é caso para se investigar. Mesmo assim,
guardarei seu depoimento em segredo. – Isaac largou o frei sozinho na cozinha
sem perceber.
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