Páginas

Pesquisar este blog

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CONTO - Atrás, na névoa

-1-
BREVE HISTÓRIA

O jovem entrou no consultório do hipnólogo na intenção de curar-se de feridas do passado. Cicatrizes imensas na alma e na pele, que roubaram seu sossego e suas memórias, como se uma borracha tivesse sido passada nas linhas de sua vida, tênues como uma névoa nas montanhas pela manhã. Às vezes, essa névoa o atrapalhava muito. Não aquela fumaça holística que pairava nas manhãs de inverno pelas montanhas da serra mineira, mas uma espessa e abundante névoa que ocultava suas memórias do passado. A intenção da consulta com o graduado hipnotista era jogar tudo no ventilador, soprar para bem longe a fumaça e ver o que foi guardado debaixo do pano da memória por anos de esquecimento.

               -2-
BARQUINHO DE PAPEL

 —Olá, tudo bem, senhor... – O hipnotista estendeu a mão para cumprimentar o cliente, porém sua tentativa de ser cortês falhou quando disse aquela última palavra. A porta rangeu atrás dele e o silêncio imperou por um mísero segundo antes de eclodir uma risada daquele jovem que entrara há pouco.
—Senhor não. Pode me chamar apenas de Breno.
—Então tá, Breno. Primeiramente, deixe-me apresentar: Meu nome é Eduardo Gontijo, hipnotista, graduado em Hipnoterapia pela UFMG. Digamos que eu seja um homem um pouco... inusitado. — Os óculos afundaram-se no rosto de Eduardo Gontijo de tal forma que ele parecia um senhor de cinquenta anos de idade, porém, era muito mais jovem, tinha apenas trinta e cinco. O sorriso aberto e simpático convidou o paciente a entrar e se acomodar. — Mas nem por isso menos competente. Pode se sentar aí. – Gontijo apontou para um divã em tom carmim no canto da sala pequena. Um claustrofóbico talvez teria problemas dentro daquele local. — Estenda a mão para mim e me fale sobre que veio procurar aqui.
O jovem falou sobre a névoa que tanto lhe atormentava.
—... É uma sensação de pavor, quase claustrofóbico, quando eu tento lembrar dos meus anos da adolescência e simplesmente não consigo. Tudo o que visualizo é fumaça. Mais nada. Não há primeiro beijo, nem primeira vez… Não há namoradas, festas, cerveja, viagens. Apenas um jovem na frente da televisão. ­— Será que passei meus anos dourados, com os hormônios à flor da pele, borbulhando e exalando de mim, criando raízes em um sofá velho e poeirento?
Ele já havia se perguntado isto antes, se as memórias que tinha eram mesmas as que estavam gravadas nos confins de sua mente; por isso mesmo estava ali em busca de respostas.
—Quero uma volta ao passado. Dá para fazer? – A cadeira vermelha em que estava sentado pareceu um pouco mais desconfortável do que antes.
Eduardo sentiu-se na rotina novamente, pensando, sozinho, naquela mente reclusa: “Mais um caso de regressão...”.
—Entendo... Pois bem, estou aqui para te ajudar. Fica tranquilo. — Gontijo estendeu as mãos grossas e quentes, tocando firmemente nos olhos do paciente. —Muito bem, Breno. Agora feche seus olhos e se concentre em minha fala.
O profissional utilizou de suas técnicas de hipnotismo para afundar o paciente em seus pensamentos mais profundos, tal qual um mergulhador em busca de um tesouro perdido. Gontijo pressionou a testa de Breno com perícia e firmeza ao mesmo tempo. Sabia onde estava mexendo. O jovem ficou imóvel, focalizando a fala de Eduardo em sua mente. A menos que a demência tenha sido atestada, Gontijo sabia que é impossível deletar pensamentos. Desta forma, eles estão lá; escondidos, encobertos ou mascarados, mas estão lá.
— Você está começando a relaxar... Sinta-se como um barco de papel em um rio lento; visualize-o. Veja-o indo para frente e para trás... Agora o barco começará a seguir a corrente de água lentamente, e você irá junto com ele. – Gontijo segurou Breno com o braço esquerdo e, com o direito, levantou as sobrancelhas do rapaz lentamente. — Suas pálpebras estarão pesadas quando eu levantar sua sobrancelha com os dedos, e você não conseguirá abrir seus olhos enquanto eu não lhe der o comando. Vou encostar minhas mãos delicadamente em suas sobrancelhas e suas pálpebras ficarão mais pesadas... Mais pesadas ainda... Muito pesadas… — Breno arqueou para o lado, já no estágio de dissociação da hipnose, em que está presente no consciente, mas sabe que algo mais está acontecendo. — Agora siga a corrente de água, que vai levar mais fundo em sua mente...

-3-
REVELAÇÕES

Breno está em uma sala escura, repleta de medo. Ele escorre pelas paredes como o sangue de um animal abatido: frio e calculista, escolhendo cada entranha em que se acomoda. É tenebroso, vem em forma de trevas que o engolem, arrancando os pensamentos bons e arremessando-os pela janela.
-Pois bem, é hora de agir e descobrir de vez o que está escondido nesta mente obscura. - Gontijo conversou consigo mesmo, visto que Breno estava deslocado do mundo, realmente sentindo o medo se entranhando em sua mente, sujando seus pensamentos e misturando-se a névoa, um pouco mais fina desta vez.
Era ele quem teria que descobrir seus segredos. Gontijo estava ali para guiá-lo.
Dando alguns passos em direção à janela embaçada pela poeira incrustada, ele esbarra em alguma coisa que fez seu coração gelar. No meio das trevas, seus batimentos disparam como uma bala de revólver, acionando um gatilho de uma reação.
-Lembre-se do que aconteceu naquele dia fatídico… Estou autorizado a entrar realmente em sua mente? Nesta realidade íntima que você construiu? Sim? Certo disso? Pois bem…
Um cachorro com a bocarra escancarada e baba escorrendo de seus dentes afiados está parado próximo à lareira, que abraça chamas crepitantes estalando pelo calor. Breno se abaixa um pouco, lentamente na direção do objeto em que esbarrara a pouco, até que suas mãos toquem em um pedaço de pano no chão de madeira lascada pelo tempo. O pano se avoluma nas mãos dele, como um truque de mágica, e ganha formas e cores vindas diretamente no nada.
(Um vestido!)
Mas não é qualquer um deles. Breno segura o tecido quente com força, e repara bem nas bolinhas vermelhas perto da manga, em como elas se dissolvem na medida em que o tecido cai sobre suas mãos. Sente o perfume doce que ele exala e vê que é de alguém que ele amou. Muito, pelo visto. Seu coração pulsa fortemente, enquanto segura o vestido de malha fresca. A peça é nostálgica; saída de um filme em preto e branco dos tempos da vovó.
(É este o vínculo quebrado)
A malha lisa começa subitamente a se desfazer, amolecer e derreter em suas mãos. Isto o faz tremer de pavor e recuar de forma instintiva. O tecido transforma-se em sangue escarlate, que mancha suas mãos e pés; e sua alma, de culpa.
Uma luz se acende bem próxima à janela. Parece ser de uma lanterna. Mas Breno não se mexe, ainda absorto e espantado com o ocorrido. Ele deixa com que a luz vá até ele.
Batem à porta.
Toc.
Toc.
Toc.
Breno hesita.
Toc. Toc. Toc.
Segurando as mãos coladas ao corpo — machadas de vermelho por um sangue esguichado do vestido de bolinhas, ele sentia o medo que estava naquele lugar acender a lareira, fazer com que a luz se espalhasse e atraísse o clarão da lanterna. Sentia como o cheiro de cachaça pairava no ar… O cheiro de álcool misturado ao desgosto… As lágrimas manchando o piso, escondidas ao lado da poltrona…
(Deixe o frio lá fora.)
-É neste momento que tudo acontece. Preparado?
Alguém está tentando entrar na casa; tudo lá dentro não passa de penumbra rasgada pela luz da lareira. O fogo crepita e estala, mas não esquenta o suficiente. Duas poltronas simples de madeira estão bem próximas à chama, e estão de costas para Breno. Ele chega mais para perto delas. Há alguém sentado na poltrona da direita que, no escuro, não passa de um vulto.
Lá fora, o clima serrano castiga a casa velha de madeira e o frio entra pelas gretas, assaltando o calor dos corpos e roubando sua vitalidade.
Os toques na porta continuam sem cessar.
Toc, toc, toc.
A figura na poltrona se levanta e deixa cair um novelo de lã. Deposita sobre um banquinho um casaco ainda não finalizado e se apressa para atender a porta. Não se preocupa em saber quem é; acostumada com a vida pacata na cidade do interior.
O clarão aumenta bem próximo à porta.
Agora que saiu da penumbra, percebe-se que é uma mulher que atende ao chamado desconhecido. É uma senhora usando um casaco de lã bem grosso, além de um cachecol que encobre seu pescoço e faz com que ela pareça um urso, contrastando com a luz da lareira. Ela tenta abrir a porta, contudo, não consegue encontrar a chave; vira-se e encontra uma escrivaninha dentro das trevas. Na terceira gaveta, acha uma chave enferrujada. Vira-se novamente e encontra o buraco da fechadura.
Lá fora venta muito, mas não neva. Em Minas Gerais não neva.
Ao abrir-se a porta, entra mais do que vento e frio pela passagem estreita. Além de um odor acre de conhaque misturando-se ao de cachaça, arromba a casa um pungente ranço de morte, acometendo a todos com pesar e uma forte dor no peito.
Um homem de barba por fazer, com um machucado enorme na bochecha esquerda, entra em um rompante de fúria. A mulher se assusta, mas permanece estática e fecha a porta assim que ele passa, evitando que o frio se instale. Entretanto, não consegue evitar que o exício sorria para o cão raivoso que ficou retido no canto onde estava. O buldogue campeiro simplesmente abana o rabo e estende a língua em resposta.
O rapaz — assim como todos ali, de rosto encoberto pela noite — aproxima-se da senhora, de forma veloz, andando de um lado para o outro. Discute com ela por um tempo, fazendo transparecer que o álcool lhe subiu à cabeça.
Este homem é Breno, escondido em uma fantasia de derrota, fracasso e fios grossos e sujos de uma barba raspando o frio. Não se parecia em nada com o espectro que o olhava, vítima de uma regressão, já com os olhos esbugalhados e frio no âmago da alma. Berra,...
...grita e brada como um soldado em plena guerra, mas não demonstra honra nem na forma como está vestido. A mulher corre no cômodo ao lado, abre a gaveta de casacos e dá-lhe o mais quente deles, passando-o por cima de seu ombro.  Por um segundo, chega a aninhar-se nos braços dela; a desgraça é maior, no entanto. Retirando um objeto afiado dos bolsos, ameaça-a. Ela recua e bate as costas na parede fria, amedrontada com seus olhos esbugalhados e vermelhos.
(Algo além do álcool corre em seu sangue)
Ele cospe muito enquanto berra. Ah, e como berra. Molha a senhora de um cuspe doentio, infestado de ódio e que contamina aquele corpo imaculado. De sua boca saem palavras sujas que machucam; navalhas afiadíssimas.
Para ela, aquilo era uma tortura.
Agarra os braços que tanto o ninaram e deixa-os vermelhos de tanto apertar, enquanto deixa cair a faca que estava segurando. O barulho do metal no assoalho de madeira faz com que o cão abocanhe sua perna em um acesso de instinto animal. O homem — que um dia fora Breno — chuta o focinho dele, que se afasta repleto de dor e sangrando um pouco.
A mulher tenta se esquivar, gritando; esbaforida e debilitada. O homem não dá trégua: Abaixa-se e pega novamente a faca, desta vez segurando-a tão firme que as juntas de seus dedos ficam brancas. Sua cara está corada de sangue, e cada vez mais parece demoníaca enquanto ambos se aproximam da lareira. A senhora pega um telefone e tenta contatar alguém, talvez um vizinho mais próximo, porém a linha estava muda.
Ele se aproxima, e não recebe a atenção pretendida. Então a chama com os pulmões cheios:
-OLHA PARA MIM, MÃE!
Ela se vira com um olhar esperançoso e maternal, vendo seu filho querido quando pequeno brincando com os bois no pasto. O buldogue corre atrás dele amigavelmente, lambendo-o sempre que podia em demonstração de carinho. Agora, tudo acabou em um flash, um segundo em que a vida beira a morte como um precipício sem fim. Ambos estavam na ponta de um penhasco, e o álcool ajudou-o a empurrá-la para o fundo, pois Breno não conseguiria sozinho.
Levantou a faca e fez o metal brilhar na luz da chama.
A senhora apenas teve tempo de gritar. Um som surdo, curto e sofrido; mas que chegou nos ouvidos do fiel companheiro. O cão voltou a atacar, desta vez afundando mais a boca na carne embebida de álcool colada aos ossos de Breno, que também gritou e reagiu com um golpe certeiro no lombo do animal. O cão urrou de dor e recuou.
Virou-se para a senhora sua mãe agonizando no chão, com um olhar vidrado na lareira acesa. Seu peito que outrora o amamentara estava vermelho de sangue, jorrando vida aos borbotões. Aos poucos… lentamente… suas pupilas se fecham.

-4-
GOLADAS DE VINHO TINTO

Breno não sabe o que fazer com o corpo, até o arrastar para mais perto da lareira. É antiga, dos tempos do império, e é grande o suficiente. Não será preciso retalhar.
Com apenas um empurrão, tudo é resolvido.
O fogo aumenta e começa a crepitar; as labaredas escalam as paredes da lareira fortes e renovadas, consumindo tudo do início ao fim. Basta um delicioso vinho para acompanhar os pensamentos insólitos daquela mente psicopática.

-5-
PROGRESSÃO

—Agora que já sabe tudo o que precisa de seu passado, podemos começar a voltar à realidade. Lentamente as cenas da regressão vão desaparecendo… O barquinho novamente começa a se mover até parar por completo… a água não é mais uma corrente… é um lago parado... E no três você irá despertar.
Um.
Dois.
Três.

Breno acordou afobado, puxando o ar gelado da sala do hipnologista.
—Prontinho. Está tudo bem? Você sente algum tipo de tontura? — Breno negou com a cabeça. — Não? Pois saiba que é normal se sentir tonto... Quase sempre os pacientes da regressão sentem-se tontos assim que retornam ao plano presente. — Eduardo Gontijo levantou-se; passadas duas horas desde o início da sessão. — Conseguiu encontrar alguma resposta de seu passado que estava bloqueada por sua mente? Eu não interfiro em nada exteriormente, apenas manipulo sua concentração para que você penetre mais fundo em suas memórias. É como se o bloqueio fosse uma porta: Eu posso até te dar uma chave, mas é você quem tem de abri-la.
Breno sentiu-se desconfortado com tudo aquilo que presenciara como se fosse uma testemunha dos crimes bárbaros de um alterego que não desejava ter. O álcool havia atiçado seus instintos animais, tornando-o bárbaro, selvagem além da conta. Nunca quisera matar sua mãe; também, caso soubesse da repercussão, preferirira continuar como órfão por um acidente de carro. A família cumprira seu papel de esconder o assassinato, mesmo que nunca tivessem deixado explicado o porquê de não ter sido realizado velório de caixão aberto. O acidente tinha sido simples, como haviam dito…
—Por sinal, conseguiu tudo o que queria? Sim? — Gontijo sorriu, mesmo constatando a expressão de dúvida e pavor encrostada na face lisa de Breno. Ossos do ofício. — Então, por hoje é só. Obrigado pela confiança e, qualquer coisa, pode retornar. — Como prometido, o hipnólogo não sabia de nada que ocorrera na mente de Breno. Continuava tudo engaiolado naquele cérebro misterioso.
O jovem se levantou lentamente, mais pálido do que de costume, e virou-se com lentidão na direção da porta. Suas pernas estavam bambas e pareciam varas longas de bambu, prestes a se romper no meio e fazer tudo desabar. Eduardo reparou nas marcas profundas na perna de Breno, que até o momento eram cicatrizes do acidente. Ele era o único sobrevivente...
— Não sabia destas cicatrizes na perna... Foi o quê? Está parecendo com dentadas caninas… — Breno sentiu-se deslocado do presente. Gontijo percebeu isto imediatamente e tratou de mudar o rumo da conversa. — Mas isto é competência sua, desculpe incomodar! —Estendeu as mãos em um gesto de despedida. — Apenas feche a porta. Belo Horizonte está congelando hoje e não quero morrer aqui dentro.
Eduardo Gontijo riu amargamente engolindo saliva e engasgando com ela. Tossiu bastante enquanto Breno contornava a cadeira do hipnólogo, fechando a porta atrás de si bem a tempo de disfarçar as lágrimas que vinham aos borbotões.
“Eu era o único sobrevivente...”












Nenhum comentário:

Postar um comentário