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terça-feira, 1 de setembro de 2015

Resenha - Fahrenheit 451



"Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido pela fuligem. Montag abriu o sorriso feroz de todos os homens chamuscados e repelidos pelas chamas."
Fahrenheit 451 é uma obra completa, recheada de tecnologias que assustam em sua primazia. Estão imersas em nosso meio, recheadas em nossas mentes, e principalmente um cenário para o qual caminhamos ultimamente.


A sociedade de Bradbury em seu livro é bastante singular. Há uma instituição denominada bombeiros, que, ao contrário do que se possa pensar, são os responsáveis por queimar livros e destruir toda e qualquer espécie de cultura impressa que não sejam os jornais do governo. Guy Montag, o protagonista, é um destes profissionais do fogo.
“Queimar era um prazer. Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas. Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu querosene peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos eram as de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e labaredas para derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da história.[...]
Na cabeça impassível, o capacete simbólico com o número 451 e, nos olhos, a chama laranja antecipando o que viria a seguir, ele acionou o acendedor e a casa saltou numa fogueira faminta que manchou de vermelho, amarelo e negro o céu do crepúsculo. A passos largos ele avançou em meio a um enxame de vaga-lumes. Como na velha brincadeira, o que ele mais desejava era levar à fornalha um marshmallow na ponta de uma vareta, enquanto os livros morriam num estertor de pombos na varanda e no gramado da casa. Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido pela fuligem. Montag abriu o sorriso feroz de todos os homens chamuscados e repelidos pelas chamas.”
Assim, na ilusão de estar prestando um serviço essencial à sociedade, Bradbury constrói um personagem desinteressado pela vida e seus prazeres, bem como perdido em suas próprias percepções.
Os livros, queimados em pilhas e mais pilhas gigantescas, à temperatura de 451 graus fahrenheit, levam consigo a cultura de uma sociedade inteiramente escrava do governo. A população, alienada do que acontece, permanece passiva e desmobilizada. Parecem que não querem ver a tragédia que acontece em sua frente.
Neste contexto desolador, surge Clarisse McClellan, uma garota que ainda consegue perceber a grama verde ao redor das casas. Consegue sentir o cheiro do óleo que impregna o ar. E consegue sentir repulsa deste cheiro. É ela quem desempenha um papel importantíssimo na vida de Guy Montag. Em um rápido encontro com o bombeiro na rua, consegue cativar seu coração e voltar seus olhos para a realidade que ele ajudou a construir e a manter dia-a-dia. É ela quem acorda Montag para o senso crítico que parecia queimado em seu interior.
“— É verdade que antigamente os bombeiros apagavam incêndios em lugar de começá-los?
 — Não. As casas sempre foram à prova de fogo, pode acreditar no que eu digo. — Estranho. Uma vez me disseram que, muito tempo atrás, as casas pegavam fogo por acidente e as pessoas precisavam dos bombeiros para deter as chamas.
Ele riu. Clarisse olhou rapidamente para ele.
— Por que está rindo?
 — Não sei. — Ele começou a rir de novo e parou. — Por quê?
— Você ri quando não digo nada de engraçado e responde na mesma hora. Nunca para para pensar no que eu digo.
Montag se deteve.
— Você é esquisita mesmo — disse, olhando para ela. — Não respeita ninguém?
— Não pretendo ser grosseira. É que eu adoro observar as pessoas. Acho que é isso. — Bem, isto aqui não significa nada para você? — disse ele, batendo com a mão no número 451 bordado na manga cor de carvão.
— Sim — sussurrou ela e apertou o passo. — Já parou para observar os carros a jato correndo pelas avenidas naquela direção?
— Você está mudando de assunto!
 — Às vezes acho que os motoristas não sabem o que é grama, ou flores, porque nunca param para observá-las — disse ela. — Se a gente mostrar uma mancha verde a um motorista, ele dirá: Ah sim! Isso é grama! Uma mancha cor-de-rosa? É um roseiral! Manchas brancas são casas. Manchas marrons são vacas. Certa vez, titio ia devagar por uma rodovia. Ele estava a sessenta por hora e o prenderam por dois dias. Isso não é engraçado? E triste, também?”.
Claramente, Clarisse McClellan tenta convencer Guy de que há algo muito errado com as pessoas a seu redor. Mesmo que ele seja um bombeiro e possa prendê-la por conspiração, ela insiste na ideia porque sabe que ele está passando por uma transformação sutil em seu interior. As pessoas estão alienadas demais para perceberem qualquer coisa, muito menos atentar-se aos detalhes, como aquela garota subversiva que insiste no assunto.
Guy, no entanto, tem de prosseguir com sua vida, mesmo que comece a duvidar que a ideia dos bombeiros tenha algum sentido. Retorna à casa com a mente cheia de “pensamentos-crime”, e depara-se com a soturna Mildred, sua esposa, de olhos vazios e corpo esquelético deitada em cima da cama. Drogada. Apagada. É a frágil impressão da vida de milhares de pessoas na sociedade do livro, uma das mais interessantes passagens da distopia de Bradbury.
Bem diferente da paranoia de Mildred, Montag enxerga em Clarisse uma alma pura repleta de nuances que nunca havia tido interesse de notar. Até mesmo as curvas da garota parecem melhor desenhadas, sem todas aquelas entradas das costelas à mostra. É como se Clarisse conseguisse perceber os pontos coloridos no meio daquele mundo repleto de cinzas. Otimista ou louca de pedra?
Fahrenheit 451 mescla brilhantemente realidade já existente com tecnologias futurísticas de opressão, gerando um impacto no leitor de tamanha proporção à medida que somos imersos completamente na trama. Sofremos junto com Guy Montag quando ele depara-se com o Sabujo Mecânico, um verdadeiro monstro e instrumento de tortura.
“O Sabujo Mecânico dormia mas não dormia, vivia mas não vivia no delicado zumbido e na sutil vibração de seu canil parcamente iluminado num canto escuro dos fundos do quartel. A luz mortiça da uma da madrugada, o luar do céu aberto emoldurado pela ampla janela refletia-se, tocava aqui e ali no bronze, cobre e aço da fera ligeiramente trêmula. A luz cintilava nas facetas de rubi e nas sensíveis cerdas de náilon das narinas da criatura que vibrava de modo muito sutil, as oito pernas esparramadas sob si como as de uma aranha, as patas munidas de coxins de borracha.”
Somente esta descrição já pode deixar arrepiado. É uma mistura de aranha e cachorro, do tipo que nenhum cidadão queira encontrar passeando pela rua. O monstro guarda seu senso animalesco dentro de sua programação. É capaz de ser regulado para perseguir um cheiro até a morte, farejando o ar e rosnando, uma arma mortal escancarada à sociedade. Inescrupulosa.
O livro como um todo possui uma narrativa simples e adequada para qualquer leitor de distopias, desde um pré-adolescente a um leitor senil. Todavia, Ray Bradbury deixa minúcias em suas palavras que somente alguém de senso crítico apurado pode perceber. A própria história sobre o paradeiro de Clarisse é um mistério de profundo cunho sociológico: A meu entendimento, foi consumida pela opressão da sociedade. Foi capturada e morta, provavelmente queimada viva dentro dos prédios governamentais. Mas Ray não fala isto, não deixa muita sugestão ao leitor para depreender o que aconteceu com ela. Apenas desapareceu com a personagem, como se ela fosse mais um dos livros queimados pelos bombeiros, os homens da pátria.
“A garota? Era uma bomba-relógio. A família vinha alimentando seu subconsciente. Estou certo disso, a partir do que vi de seu histórico escolar. Ela não queria saber como uma coisa era feita, mas por quê. Isso pode ser embaraçoso. Você pergunta o porquê de muitas coisas e, se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz. A coitada da garota está morta, e foi melhor para ela.”
Montag teve várias chances de tentar mudar a situação em que se encontrava, porém se revelou fraco para subversão. Foi acostumado a ser passivo em seus atos; um fantoche.
O final do livro é inspirador, mesmo que seja carregado de melancolia. Mostra-me que é preciso esperar, sempre manter-se na sombra. Até que uma força maior resolva agir e modificar tudo. Em Fahrenheit 451 foi a guerra que dizimou as cidades. Contudo, já haviam instalado o sentimento de mudança, que viajava dia e noite nos trilhos dos trens.
“— O que você tem a oferecer?
— Nada. Achei que tinha parte do Eclesiastes e talvez um pouco do Apocalipse, mas nem isso tenho agora.
— O Eclesiastes seria ótimo. Onde estava ele?
— Aqui — disse Montag, tocando a cabeça.
Ray Bradbury - O autor
[...]
—Montag, algum dia você gostaria de ler a República de Platão?
— Claro! — Eu sou a República de Platão. Gostaria de ler Marco Aurélio? O senhor Simmons é Marco Aurélio.
— Como vai? — disse o sr. Simmons.
— Olá — disse Montag.
— Quero que conheça Jonathan Swift, autor daquele pernicioso livro político, As viagens de Gulliver! E esse sujeito aqui é Charles Darwin, e este aqui é Schopenhauer, este outro é Einstein, e este aqui ao meu lado é o senhor Albert Schweitzer, um filósofo realmente muito gentil. Estamos todos aqui, Montag. Aristófanes, Mahatma Gandhi, Gautama Buda, Confúcio, Thomas Love Peacock, Thomas Jefferson e o senhor Lincoln, se você quiser. Somos também Mateus, Marcos, Lucas e João.[...] Quando a guerra terminar, talvez possamos ser de alguma valia para o mundo.”
Afinal, a cultura é nosso maior patrimônio. Não é o papel que comanda o mundo, mas a poderosa capacidade do ser humano de erguer-se das cinzas. Como uma fênix. 

Nota : 5/5





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