"Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido pela fuligem. Montag abriu o sorriso feroz de todos os homens chamuscados e repelidos pelas chamas."
Fahrenheit
451 é uma obra completa, recheada de tecnologias que assustam em sua primazia. Estão
imersas em nosso meio, recheadas em nossas mentes, e principalmente um cenário
para o qual caminhamos ultimamente.
A
sociedade de Bradbury em seu livro é bastante singular. Há uma instituição
denominada bombeiros, que, ao contrário do que se possa pensar, são os
responsáveis por queimar livros e destruir toda e qualquer espécie de cultura
impressa que não sejam os jornais do governo. Guy Montag, o protagonista, é um
destes profissionais do fogo.
“Queimar era um prazer. Era um prazer
especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e
alteradas. Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu querosene
peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos eram as
de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e labaredas para
derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da história.[...]
Na cabeça impassível, o capacete
simbólico com o número 451 e, nos olhos, a chama laranja antecipando o que
viria a seguir, ele acionou o acendedor e a casa saltou numa fogueira faminta
que manchou de vermelho, amarelo e negro o céu do crepúsculo. A passos largos
ele avançou em meio a um enxame de vaga-lumes. Como na velha brincadeira, o que
ele mais desejava era levar à fornalha um marshmallow na ponta de uma vareta,
enquanto os livros morriam num estertor de pombos na varanda e no gramado da
casa. Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se
dissolviam no vento escurecido pela fuligem. Montag abriu o sorriso feroz de
todos os homens chamuscados e repelidos pelas chamas.”
Assim,
na ilusão de estar prestando um serviço essencial à sociedade, Bradbury
constrói um personagem desinteressado pela vida e seus prazeres, bem como
perdido em suas próprias percepções.
Os
livros, queimados em pilhas e mais pilhas gigantescas, à temperatura de 451
graus fahrenheit, levam consigo a cultura de uma sociedade inteiramente escrava
do governo. A população, alienada do que acontece, permanece passiva e desmobilizada.
Parecem que não querem ver a tragédia que acontece em sua frente.
Neste
contexto desolador, surge Clarisse McClellan, uma garota que ainda consegue
perceber a grama verde ao redor das casas. Consegue sentir o cheiro do óleo que
impregna o ar. E consegue sentir repulsa deste cheiro. É ela quem desempenha um
papel importantíssimo na vida de Guy Montag. Em um rápido encontro com o
bombeiro na rua, consegue cativar seu coração e voltar seus olhos para a
realidade que ele ajudou a construir e a manter dia-a-dia. É ela quem acorda
Montag para o senso crítico que parecia queimado em seu interior.
“— É verdade que antigamente os
bombeiros apagavam incêndios em lugar de começá-los?
—
Não. As casas sempre foram à prova de fogo, pode acreditar no que eu digo. —
Estranho. Uma vez me disseram que, muito tempo atrás, as casas pegavam fogo por
acidente e as pessoas precisavam dos bombeiros para deter as chamas.
Ele riu. Clarisse olhou rapidamente para
ele.
— Por que está rindo?
—
Não sei. — Ele começou a rir de novo e parou. — Por quê?
— Você ri quando não digo nada de
engraçado e responde na mesma hora. Nunca para para pensar no que eu digo.
Montag se deteve.
— Você é esquisita mesmo — disse,
olhando para ela. — Não respeita ninguém?
— Não pretendo ser grosseira. É que eu
adoro observar as pessoas. Acho que é isso. — Bem, isto aqui não significa nada
para você? — disse ele, batendo com a mão no número 451 bordado na manga cor de
carvão.
— Sim — sussurrou ela e apertou o passo.
— Já parou para observar os carros a jato correndo pelas avenidas naquela
direção?
— Você está mudando de assunto!
—
Às vezes acho que os motoristas não sabem o que é grama, ou flores, porque
nunca param para observá-las — disse ela. — Se a gente mostrar uma mancha verde
a um motorista, ele dirá: Ah sim! Isso é grama! Uma mancha cor-de-rosa? É um
roseiral! Manchas brancas são casas. Manchas marrons são vacas. Certa vez,
titio ia devagar por uma rodovia. Ele estava a sessenta por hora e o prenderam
por dois dias. Isso não é engraçado? E triste, também?”.
Claramente,
Clarisse McClellan tenta convencer Guy de que há algo muito errado com as
pessoas a seu redor. Mesmo que ele seja um bombeiro e possa prendê-la por
conspiração, ela insiste na ideia porque sabe que ele está passando por uma
transformação sutil em seu interior. As pessoas estão alienadas demais para
perceberem qualquer coisa, muito menos atentar-se aos detalhes, como aquela
garota subversiva que insiste no assunto.
Guy,
no entanto, tem de prosseguir com sua vida, mesmo que comece a duvidar que a
ideia dos bombeiros tenha algum sentido. Retorna à casa com a mente cheia de
“pensamentos-crime”, e depara-se com a soturna Mildred, sua esposa, de olhos
vazios e corpo esquelético deitada em cima da cama. Drogada. Apagada. É a
frágil impressão da vida de milhares de pessoas na sociedade do livro, uma das
mais interessantes passagens da distopia de Bradbury.
Bem
diferente da paranoia de Mildred, Montag enxerga em Clarisse uma alma pura
repleta de nuances que nunca havia tido interesse de notar. Até mesmo as curvas
da garota parecem melhor desenhadas, sem todas aquelas entradas das costelas à
mostra. É como se Clarisse conseguisse perceber os pontos coloridos no meio
daquele mundo repleto de cinzas. Otimista ou louca de pedra?
Fahrenheit
451 mescla brilhantemente realidade já existente com tecnologias futurísticas
de opressão, gerando um impacto no leitor de tamanha proporção à medida que
somos imersos completamente na trama. Sofremos junto com Guy Montag quando ele
depara-se com o Sabujo Mecânico, um verdadeiro monstro e instrumento de
tortura.
“O Sabujo Mecânico dormia mas não
dormia, vivia mas não vivia no delicado zumbido e na sutil vibração de seu
canil parcamente iluminado num canto escuro dos fundos do quartel. A luz
mortiça da uma da madrugada, o luar do céu aberto emoldurado pela ampla janela
refletia-se, tocava aqui e ali no bronze, cobre e aço da fera ligeiramente
trêmula. A luz cintilava nas facetas de rubi e nas sensíveis cerdas de náilon
das narinas da criatura que vibrava de modo muito sutil, as oito pernas
esparramadas sob si como as de uma aranha, as patas munidas de coxins de
borracha.”
Somente
esta descrição já pode deixar arrepiado. É uma mistura de aranha e cachorro, do
tipo que nenhum cidadão queira encontrar passeando pela rua. O monstro guarda
seu senso animalesco dentro de sua programação. É capaz de ser regulado para
perseguir um cheiro até a morte, farejando o ar e rosnando, uma arma mortal
escancarada à sociedade. Inescrupulosa.
O
livro como um todo possui uma narrativa simples e adequada para qualquer leitor
de distopias, desde um pré-adolescente a um leitor senil. Todavia, Ray Bradbury
deixa minúcias em suas palavras que somente alguém de senso crítico apurado
pode perceber. A própria história sobre o paradeiro de Clarisse é um mistério
de profundo cunho sociológico: A meu entendimento, foi consumida pela opressão
da sociedade. Foi capturada e morta, provavelmente queimada viva dentro dos
prédios governamentais. Mas Ray não fala isto, não deixa muita sugestão ao
leitor para depreender o que aconteceu com ela. Apenas desapareceu com a
personagem, como se ela fosse mais um dos livros queimados pelos bombeiros, os
homens da pátria.
“A garota? Era uma bomba-relógio. A
família vinha alimentando seu subconsciente. Estou certo disso, a partir do que
vi de seu histórico escolar. Ela não queria saber como uma coisa era feita, mas
por quê. Isso pode ser embaraçoso. Você pergunta o porquê de muitas coisas e,
se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz. A coitada da garota
está morta, e foi melhor para ela.”
Montag
teve várias chances de tentar mudar a situação em que se encontrava, porém se
revelou fraco para subversão. Foi acostumado a ser passivo em seus atos; um
fantoche.
O
final do livro é inspirador, mesmo que seja carregado de melancolia. Mostra-me
que é preciso esperar, sempre manter-se na sombra. Até que uma força maior
resolva agir e modificar tudo. Em Fahrenheit 451 foi a guerra que dizimou as
cidades. Contudo, já haviam instalado o sentimento de mudança, que viajava dia
e noite nos trilhos dos trens.
“— O que você tem a oferecer?
— Nada. Achei que tinha parte do
Eclesiastes e talvez um pouco do Apocalipse, mas nem isso tenho agora.
— O Eclesiastes seria ótimo. Onde estava
ele?
— Aqui — disse Montag, tocando a cabeça.
Ray Bradbury - O autor |
[...]
—Montag, algum dia você gostaria de ler
a República de Platão?
— Claro! — Eu sou a República de Platão.
Gostaria de ler Marco Aurélio? O senhor Simmons é Marco Aurélio.
— Como vai? — disse o sr. Simmons.
— Olá — disse Montag.
— Quero que conheça Jonathan Swift,
autor daquele pernicioso livro político, As viagens de Gulliver! E esse sujeito
aqui é Charles Darwin, e este aqui é Schopenhauer, este outro é Einstein, e
este aqui ao meu lado é o senhor Albert Schweitzer, um filósofo realmente muito
gentil. Estamos todos aqui, Montag. Aristófanes, Mahatma Gandhi, Gautama Buda,
Confúcio, Thomas Love Peacock, Thomas Jefferson e o senhor Lincoln, se você
quiser. Somos também Mateus, Marcos, Lucas e João.[...] Quando a guerra
terminar, talvez possamos ser de alguma valia para o mundo.”
Afinal,
a cultura é nosso maior patrimônio. Não é o papel que comanda o mundo, mas a
poderosa capacidade do ser humano de erguer-se das cinzas. Como uma fênix.
Nota : 5/5
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