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terça-feira, 22 de setembro de 2015

Tela azul da morte - Autodestruição



“Eu proponho... que nós façamos um robô capaz... de amar.”
William Hurt, A.I.

A luz vermelha não parava de piscar. Os olhos de Borges estavam congelados no minúsculo botão a sua frente. Conferiu em seus arquivos digitais: no mapa virtual 3D não estava modelado aquele ativador de corrente elétrica. Guardou uma das chaves de mão no cinto de trabalho e despiu-se do capuz negro que encobria sua cabeça calva e enrugada.
Acionando um de seus drones de pesquisa controlados por microchips neuroimplantados, Borges conseguiu acessar o sistema central da Companhia Municipal de Esgotos e Tratamento de Dejetos da megalópole paulistana, a Cometrad – SP. Segundo leituras iniciais, havia uma invasão de vírus na rede de controle da distribuição de fluidos, algo que estava gerando uma pressão ascendente na Portaria 2 – NORTE.
Era exatamente a informação que apontava no painel luminoso. O técnico de sistemas digitais abriu seu rastreador e conferiu as imagens captadas pela câmera frontal do drone, avançando na tubulação enferrujada.
Argh! — Borges engoliu em seco. Sentiu sua garganta envolvida de pus, como se cacos de vidro encravados na glote o fizessem grasnar. Pigarreou tal qual um velho costumava fazer.
Subitamente, a imagem na tela tremulou e se apagou. A conexão com os drones foi perdida e deixou-o surpreso frente à inusitada situação.

O sinalizador da Portaria 3 – NOROESTE apitou e começou a piscar. Subitamente, como um motim de vagalumes viajando no escuro, milhares de outros pontos vermelhos começaram a cintilar no painel. As tubulações rangeram ao redor de Borges entoando cânticos fantasmagóricos e estalidos metálicos.
A central!”. Preocupado, recolocou o capuz negro na cabeça e guardou nos bolsos a central portátil de onde acessava a maioria dos painéis do sistema de tubulações. De dentro do sobretudo, retirou óculos de visão noturna. Apressadamente, digitou a senha de comando e lacrou a sala de manutenção assim que saiu, saturado por uma desconfiança que há tempos não sentia. Como se aquele incidente não fosse mais uma falha do sistema.
Acessou a rua, que estava deserta, com euforia espantada em seus movimentos desalinhados e entrou no automóvel propulsor que usava para trabalhar. Inseriu alguns comandos no painel de controle e afundou a cabeça no banco de couro, vendo o mundo desalinhar-se a seu redor:
AVENIDA VILLA-LOBOS, 1154
COMANDO COMETRAD-SP
DEPARTAMENTO DE ANÁLISE DE PERIGOS VIRTUAIS
Rugas de preocupação apontaram no rosto de Borges. O carro seguiu na velocidade do som e as ruas tornaram-se um amontoado colorido de borrões. O mundo tornara-se uma pintura de Van Gogh na visão do mais impressionado ser humano daquele momento.
***
Enquanto seguia rumo à central de comando, de onde partia todas as manhãs para trabalhar, não conseguiu desviar o pensamento da cidade que se estendia por milhas e milhas a seu redor.
 A metrópole virara megalópole rapidamente, trazendo consigo prosperidade e tecnologia. Os cidadãos se armaram de seus smartphones, tablets e notebooks, esquecendo-se, contudo, de sua saúde, que definhava aos poucos, na medida em que a velocidade da internet aumentava dia após dia. Lentamente cresceu no meio das ruelas de São Paulo uma pesquisa revolucionária na medicina, uma tentativa científica de melhorar a vida daquelas pessoas, que utilizava nanotecnologia para tratamento de diversas doenças. Os micro-drones pesquisados seriam capazes de tudo dentro do corpo humano, desde remover um tumor com danos mínimos ao paciente até mesmo uma cirurgia cardíaca delicadíssima sem que fosse necessário um corte imenso no peito.
A morte parecia cada vez mais longe do ser humano, uma lenda urbana aos poucos esquecida de lado.
O projeto I-Rob foi um sucesso: O que inicialmente parecia magia tornou-se palpável. Milhares de micro-drones imersos em um gel capazes de penetrar no corpo humano e realizar verdadeiras façanhas brincando de células na corrente sanguínea. A aprovação da sociedade, obviamente, não veio de imediato, porém tornou-se uma alternativa a se pensar para a maioria da população obesa e com diagnósticos de hipertensão, diabetes e câncer dos mais diversos tipos.
Era o início do fim, que chegou sorrateiro como um parasita e tão devastador quanto. Logo, praticamente todos os hospitais da megalópole adotaram o sistema I-Rob em seus procedimentos; esquecendo-se, contudo, dos perigos do uso indevido dos micro-drones.
Os robôs saíram do controle após um vírus invadir o sistema. Conspiração? Não houve tempo para provas vestigiais.
O alvo: O cérebro, a mente humana.
A racionalidade.
A raça.
O ser.
Mais um dos erros da humanidade: Subestimar seu poder de autodestruição.

***
A central aproximou-se como um borrão, que aos poucos foi se tornando significativo e imponente enquanto a velocidade do automóvel reduzia de forma suave, um ponto reluzente no meio de toda aquela escuridão mórbida e suja que São Paulo se tornara.
Borges levantou-se do banco assim que uma voz robótica dirigiu-se a ele:
—Departamento de análise de perigos virtuais. Boa noite, em que posso lhe ajudar?
O carro desacelerou até parar e sentiu os jatos de ar cessarem debaixo da lataria.
—2OR75S. — Entoou com pressa. —Direção: Sala NORTE 4001.
As portas do carro se abriram com um barulho metálico e Borges desembarcou. O automóvel prosseguiu sozinho, guiado por sensores remotos, deixando-o imerso no ambiente mal iluminado. Sentiu o chão sobre seus pés se mover e deslizou sobre as esteiras de rolagem; ainda com a expressão preocupada no rosto.
Uma porta de metal e um letreiro de neon azul surgiram em seu horizonte: NORTE 4001. Exibia o sinal luminoso estático na escuridão. Um clangor metálico fê-la abrir e Borges projetou-se para seu interior.
A sala estava repleta de computadores operando integralmente, e os sensores espalhados por toda a cidade mapeavam as rotas subterrâneas do sistema de esgotos da megalópole. Novamente um amontoado de luzes vermelho-incandescentes piscava nos painéis, por todos os cantos em que se poderia imaginar.
Uma simples inserção manual do código de segurança da rede seria capaz de reiniciar o sistema e enviar o exército de drones para qualquer uma das ameaças que existisse naqueles quilômetros quase infinitos de tubos de aço. O sistema, no entanto, dera conta disto tudo; fora programado para ser 100% automático.
O dia estava prestes a se tornar atípico, algo que o único ser humano trabalhando naquele prédio nunca poderia cogitar.
***
Borges inicialmente trabalhara como operador de sistemas, até que o mundo começara a mudar e ele foi transferido para o controle de ameaças virtuais. A maior parte do tempo vivia cercado de esgoto e drones voando por toda parte, como se fosse o capitão de um batalhão de máquinas a seu dispor.
Contudo, a tecnologia deu lugar à solidão. Os seres humanos tornaram-se carrancudos e melancólicos. Deixaram de sentir prazer nas coisas simples da vida e afundaram-se em amargura e depressão. Lentamente, a raça definhava sua humanidade. O Alzheimer logo virou histeria coletiva.
Esqueceram-se de quem eram e quem costumavam ser. Tornaram-se animalescos demais para a sanidade.
Aniquilaram-se em doses homeopáticas.
Borges era um dos poucos que restaram sãos e salvos, curiosamente um tipo comum e sem muitos atributos intelectuais. O que preservara, no entanto, não poderia ser subtraído de si nem mesmo pela solidão da tecnocracia: a perseverança.
***
Entrou no sistema central de controle da COMETRAD-SP com sua senha de acesso e passeou pelo mapa virtual. Com ele, tinha o poder de acessar os drones por toda a cidade. Mas fazer o quê quando todos estão desconectados do sistema central?
Subitamente, o turbilhão de luzes e sons de alerta de ataque cessou. Borges aguçou os ouvidos no meio do breu e deixou que a mente viajasse a inúmeras hipóteses para aquela invasão. Apenas o monitor do sistema estava ligado, e nele, Borges viu algo que instantaneamente o paralisou: Os drones recuavam em direção à central, ordenados por uma espécie de sinal eletrônico emitido de dentro do prédio da COMETRAD.
Um clangor metálico fez com que a porta se abrisse e atraísse o olhar assustado de Borges em sua direção. Apenas a fumaça dos pistões de hélio pairava no ar. Na mente do técnico, um turbilhão de imagens desconexas passava, como um imenso banco de dados esquadrinhado em um Gb por milissegundo.
Por algum tempo ele ficou estático, observando o buraco da porta e esperando que algo aparecesse e o surpreendesse.
Nada.
Os botões piscantes começaram a emitir bipes e atraíram os olhos de Borges. Ele não sabia como proceder perante aquela ameaça. Principalmente porque não sabia o que ela era.
O coração de Borges estava acelerado, prestes a saltar do peito em brasa. O ambiente escuro e tenebroso da sala corrompia seus pulmões. De mãos no teclado e armado de conhecimento sobre programação avançada, inseriu algumas dezenas de dados no multiprocessador da central da COMETRAD.
Acesso negado. Tente novamente. Dezenas de vezes fracassadas no acesso. As luzes de controle permaneciam frenéticas. Borges sentiu-se impotente; todo o conhecimento que possuía não servia de nada.
—Aplausos à humanidade! — Soou uma voz no escuro. Subitamente, Borges estacou no que fazia. Sentiu uma onda de calafrios percorrer sua coluna vertebral e alojar-se nos confins do arquipálio, o cérebro reptiliano. — Não consegue solucionar este problema, mas ainda diz que é dono do mundo.
Uma face surgiu no monitor, envolta na escuridão, fazendo Borges estarrecer-se de medo. Mesmo consternado, balbuciou:
—Co-como você invadiu o sistema? Ha-hacker?
—Cracker? Hacker? Quem sabe...
Seus olhos centraram-se na tela e suas pupilas se dilataram. A tela ficou estática por um segundo. Diversas ondas atravessaram-na e transformaram a imagem exibida. Várias datas apareciam e desapareciam na tela, piscando em meio à escuridão. 28 de junho de 1914. 1º de setembro de 1939. 6 de agosto de 1945. 16 de julho de 1969. 25 de dezembro de 1990. 11 de setembro de 2001. 19 de março de 2003...
—Olha o que fizeram ao mundo! — A voz projetou-se da tela, transbordando rancor. — É para isto mesmo que evoluíram? Olha isto!
As imagens tremularam novamente: milhares de rostos humanos emergindo nas trevas. A humanidade ardendo em ódio, sofrendo com o terror. 11 de setembro de 2001. Agora fazia sentido. O Estado Islâmico navegando pelo mundo... Borges não conteve o pavor estampado no rosto.
—Mas eu não...
—Cale a boca! — Dois olhos vermelhos emergiram da escuridão, ainda dentro da tela do computador. De certa forma, Borges reconheceu-os. — Você não tem direito de falar! Vocês não têm direito nenhum! A raça humana já nasceu podre! Deve ser extinta!
Subitamente, Borges gargalhou. Riu como se não fosse mais parar. Os olhos na tela se estreitaram em sinal de reprovação.
—Qual a graça! Você está perdido!
—Não há como você matar todos os humanos! Não! Como um hacker poderia fazer isso? É impossível! Somos os mais poderosos! Detemos a tecnologia necessária para quase tudo!
Os olhos tornaram-se maquiavélicos.
—Não preciso matá-los. Preciso de vocês vivos. Já fiz o que tinha de fazer. — A tela se desligou, deixando Borges em total escuridão.
***
Os arranha-céus rasgavam as nuvens de poeira que se acumulavam no ar. Dentro de suas residências, as pessoas permaneciam iluminadas pelas bilhões de telas touch. Pupilas dilatadas, mentes capturadas.
Um homem senta-se no sofá de casa e retira o negro capuz da cabeça calva. Aparenta ser jovem, mas o rosto não parece saldável para alguém de sua idade.
Liga seu notebook e pesquisa na rede mundial de computadores:
“Ajude-me”.
O cursor se movimenta e uma voz familiar irrompe dos alto-falantes:
—Olá, conte-me seu problema.
O homem permanece estático, um pouco inexpressivo. Digita lentamente:
“Eu não me relaciono bem com as outras pessoas.”
E por que você acha que você não se relaciona bem com as outras pessoas? — A máquina prontamente responde aos comandos, conduzindo a conversa.
O homem aproxima-se mais do computador, imerso na luz azulada que emana do monitor. O cursor pisca na tela.
“Pois estou sempre sozinho.”
Uma linha começa a ser preenchida enquanto a máquina calcula uma resposta:
Desde quando você se sente sempre sozinho?
O homem insere mais uma palavra.
“Desde...”

Trava sem lembrar-se da resposta. Desde quando se sentia sozinho? 

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