Tudo escuro e eu perdido nas
sombras. Tateava paredes ásperas de pedra e perseguia o
lodo e as minúsculas briófitas que insistiam em nascer na penumbra. O quarto
negro não me era familiar, mesmo que, por ventura, persistia a sensação de que
eu já estivera por ali.
O
calor sufocava-me e o ar quente seco e seco incineravam meus pulmões abertos e
despertos, sequestrando grande parte do oxigênio ao meu redor. Minha testa
suava rios de gotas salgadas, e meus cabelos grossos lambidos de suor
colavam-se a meu corpo e absorviam com eficiência seu calor.
Todo
o meu dorso doía, e uma amnésia que roubara minhas memórias insistia em
fazer-me fraco.
Frestas
pela parede indicavam-me que o sol brilhava alto sobre o horizonte, e as
constelações desarranjadas que elas formavam eram um tênue mapa astral que me divertia
nos entremeios das estrelas difusas.
Corri
os olhos de pupilas dilatadas, e pela primeira vez em alguns dias de estadia
pude distinguir algumas formas geométricas a meu redor, possivelmente um móvel
ou a própria porta.
Levantei-me
debilmente e lambuzei os dedos em algo na parede de pedras, que me deixavam
receoso do que poderia ver. Meus olhos começavam a namorar a escuridão latente,
e eu já visava a quase imperceptível linha da porta amadeirada.
Cambaleei,
e apesar do treinamento esparciata que recebera, fugiram-me as forças naquele
momento. Por isso, tive de retornar à viscosidade que me saltou aos dedos na
parede gelada.
Enfim,
minutos se passaram junto às fluidas e alvas lembranças, difusas em minha
mente, e pude alcançar minha possível salvação, tão perto de mim e tão longe de
ser real.
Toquei
na madeira áspera e segmentada, indicando que era uma porta de tábuas.
Pressionei pregos metálicos que a envolviam rigorosamente, tornando-a tão
estável quanto uma barra de ouro fundido. Coloquei-me a postos com certa
destreza e apalpei um retângulo gélido, coberto por travas também metálicas.
Estas proviam minha prisão, mesmo que nunca saberia eu o porquê de estar
recluso ali de forma tão desumana.
Abruptamente,
uma portinhola escancarou-se e rompeu com a escuridão que chegava a minha
córnea, cegando-me com a luz tremulante das tochas acesas no exterior.
Um
bigode escroto e deliberadamente perfeito, salpicado de fios brancos e de
memórias alimentares interveio sobre a luz, postando-se entre a porta e a
brilhante rajada, sombreando meu rosto cansado e recostando as pupilas por hora
até retornarem ao normal.
Quis
questionar os motivos reais de minha “estadia” naquele cubículo escuro, mas as
poucas rugas do rosto sardento do grego de meia-idade me revelavam o descaso
praticado por ele; então de pouco adiantavam reclamações.
A
boca dentada abriu-se como um vórtice, sugando minhas palavras ao interior e
cuspindo fonemas inicialmente inaudíveis, que foram aos poucos transmutados em
frases, batendo em meus ouvidos e gerando uma sinfonia psicodélica.
-...
Então, ele deseja vê-lo o mais rápido possível. – Pestanejei por alguns
instantes. – Vamos?
Abriu
a pesada porta de madeira e puxou-me ao exterior, cuspindo-me da prisão escura
e deixando-me constrangido ao perceber minha nudez.
-Vais
deixar-me ir assim? – Fiz sinal de reprovação.
O
homem fitou-me, e rapidamente me entregou uma toga de algodão, meio suja, mas
suficiente para esconder-me as vergonhas. Usei das dobras gregas para fazê-la
adaptar-se ao meu corpo. O homem levantou-se de um rasgo na pedra e conduziu-me
pelo corredor fino e fundo, de onde não conseguia ver o final.
Fui
dirigido por espaços bem iluminados, alternando-se entre celas, e, depois de passar
por portas escuras de madeira e salas mais escuras ainda, pude sentir o aroma
do mundo exterior.
Outras
aberturas na parede de pedra e eu estava fora da construção, dando as costas à
prisão e de cara com a ágora principal da cidade movimentada. Ao longo da linha
do horizonte, estendia-se o pátio de combates e academia filosófica, ambos
cheios de gregos talhando a mente e exercitando o corpo; parcialmente
semelhante às minhas atividades em Esparta, onde nos dedicávamos às artes
físicas, com treinamentos especiais às zonas abdominais e aos outros músculos
funcionais, afinal, éramos preparados constantemente para a guerra.
Apalpei
minha barriga cansada de se exercitar e percorri os gomos se separavam as coxas
do peitoral másculo, tentando deglutir o que fazia um espartano musculoso no
templo da democracia pomposa de Atenas.
Pelas
ruas de terra da polis, pessoas envoltas em togas de algodão encaravam-me como
um apátrida, ou até mesmo um escravo de guerra, mas jurava por Ares, o deus da
guerra, que nunca estivera antes em local tão estranho. Jamais vira a suntuosa
acrópole no topo do monte, circundado por um panteão e pelo resto da cidade que
por ventura respirava intelectualidade, algo que sinceramente por meu pai já
bastava.
Um
soldado forte e bem defendido por uma armadura de combate-Obviamente inferior à
espartana e pesada, comprovada da postura curvada do homem- postou-se a meu
lado, acompanhado de outro de porte físico bom, porém condenável para os
padrões esparciatas, ajudou a conduzir-me para o outro lado da cidade.
Juntos,
os dois serviam de escolta para um espartano, eu. Cidadão ativo e que
injustamente fora levado por thetas que insistiam em se alistar ao capenga
exército desenvolvido por fora da polis da guerra. Pobres atenienses.
Uma
construção jônica, tombada cerca de dois graus à esquerda, foi me aparecendo à
frente, vinte metros adiante, e reparei nas colunas marmóreas ao nível da rua.
Pelas características arquitetônicas, poderia deduzir que se tratava do
tribunal da “politika” ateniense, para
o qual se julgavam deserções contra o próprio Clístenes, de onde hão de aplicar
um código tão apetecido de crueldade que um prisioneiro comum talvez nunca
saísse da prisão sobre as circunstâncias em que entrara.
Foi
assim com meu pai, Dédalo. Ah! Aquele arquiteto dos deuses, enfurnado em suas
pesquisas, que ficou encabeçado em um projeto ordenado pelo rei Minos, e que
lhe empertigou de tal forma que fora taxado louco pelos atenienses eupátridas.
A solução nem um pouco atraente foi colocá-lo naquele labirinto maldito, à
mercê do próprio Minotauro, e de onde nunca mais saiu.
Agora,
cá estava eu, molhado de suor e desperdiçando meu corpo definido para saciar
gregos de nariz em pé e que zombavam incessantemente de minha masculinidade
aflorada perante os cérebros torneados dentro daqueles corpos gordos definhados
pelas ruas de pedras.
Abriu-se
caminho por entre um grupo de garotas eufóricas com minha aparência, e fui
conduzido ao interior do salão principal, com os pés sujos de areia e quentes,
mudando abruptamente para um chão de pedra fria e lisa.
O
homem que iria me julgar estendia-se por uma cadeira rígida e imponente, e um
conselho de anciãos postou-se a seu lado para proceder com meu julgamento.
(Apesar de eu nem ao menos saber como estava naquela situação).
Joguei
o corpo ao lado e escorei-me em uma coluna fina, provavelmente onde amarravam
os prisioneiros para julgá-los. Nada fizeram, entretanto, acerca de minhas mãos
soltas. Em virtude disso, recostei-as no ar e esperei aqueles hipócritas
decidirem meu futuro.
Após
o julgamento, que curiosamente não fora proferido uma sentença audível,
pegaram-me pelo pescoço e levaram-me ao centro da ágora, onde em praça pública,
despiram-me e humilharam-me de todas as formas possíveis, onde dezenas de
pessoas animadas reuniram-se para ver mais uma daquelas punições.
Cortaram
meus lindos e grossos cabelos, deixando-me aparado como uma árvore após a poda.
Rasparam a penugem da escassa barba em meu rosto, que insistia em nascer mesmo
quando a retirava. Abriram sulcos, sem dó, onde deveria estar um maxilar
curvilíneo, elegante. Retiraram-me a toga com violência, rasgando o algodão
macio, deixando-me às ventas com o corpo nu para ser flagelado.
Neste
ponto, olhei para duas garotas que cochichavam, aflitas, na multidão, e sorri
maliciosamente, pois sabia que estavam gostando do que viam.
Todavia,
fui surpreendido pelos mesmos que trouxeram-me até ali, e retiraram-me com
tamanha truculência, proferindo palavras em um dialeto incompreensível,
consumindo-se de prazer por açoitar-me com perversidade.
Jogaram-me
num fosso escuro e fundo, que me traria uma dolorosa queda até um solo barrento
e gelado, bastante mal iluminado. Eu sabia, por interpretar a condenação mal e
porcamente, que poderia ter sido largado no labirinto que meu próprio pai
construíra. O mesmo homem que agora jazia prostrado em um canto, tendo que
conviver com o temor constante de ser assolado por uma das pragas do labirinto,
ou até mesmo ser atacado pelo próprio bovino desesperador, o Minotauro.
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