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domingo, 31 de agosto de 2014

Apoteose de Ícaro - Parte 3

Pedras e tropeços depois, além de gotas de suor que lambiam meu rosto e insistiam em desmascarar meu corpo nu, e eu havia chegado ao cume do planalto rochoso.
-Ícaro! – A voz soava-me familiar. Pude, por conseguinte, enxergar seu dono ocupado com peles de carneiros para secar ao sol, um velho ranzinza apesar de suportar um ego extremamente engenhoso. Depois deste primeiro contato visual, tive a certeza de quem era o dono da voz rouca e cansada.
-Pai! – Abracei-o com garra. Pela segunda vez em suas eternas vidas, os deuses viram um espartano chorar, desta vez de alegria.
Um não, dois deles.
E nossa reunião tão aguardada passou-se lentamente, ambos despidos como viemos ao mundo e felizes por termos nos encontrado. Não mais importava-nos as vergonhas saltitantes; somente a felicidade do reencontro entre pais e filho.
Abraçamo-nos ternamente até que resolvemos compartilhar nossas aventuras durante o período em que estivemos separados. Contei sobre o julgamento, a parte que eu não sabia os motivos de minha condenação, os abusos dos atenienses pervertidos, as garotas da ágora que riam de meu corpo nu e todas as outras experiências que passei pelo labirinto que ele mesmo havia construído; cujo estávamos presos naquele momento.
Acabei omitindo para meu bem a parte da interação orgânica com a dríade da macieira, Demétria - apesar de lembrar-me com carinho dela – já que nas lendas antigas nos dizem que é um mau agouro relacionar-se tão intimamente com uma hadríade.
Contei somente sobre a maçã dourada que rolara incessantemente e guiara-me até aqui.
Dédalo, meu pai, ficou maravilhoso e logo depois de ouvir minha maluca e mirabolante história, tocou-me no ombro e disse suavemente em meu ouvido palavras que soaram como líras e cítaras afinadas no theatro graeco, que, todavia, fincaram como espadadas em meu peito.
-Eu construí esse labirinto. Eu sou seu pai. - Parou momentaneamente, e pude sentir seu braço se apertando sobre meu ombro, sua respiração sobre minha orelha e sua barba roçando nela. Deixou-me com o coração na boca e sufocou-me lentamente aquele silêncio mortal. – Sei sobre Demétria, não tente me esconder nada.
Fiquei em choque, mas ele me tranquilizou assim que percebeu meu estado emocional. Abraçou-me novamente em sinal de consolo, e pude sentir suas preocupações paternas se abaterem sobre mim.
-Não se preocupe meu garoto, a maçã é o fruto proibido e, de tão prazeroso e gostoso de provar, seduz aquele jovem que passar por lá. - Sorriu e mordeu os lábios. Olhou para mim e prosseguiu cautelosamente. Devo confessar que Demétria era muito bonita...
Deixando tudo ao relento, pude entender que Dédalo sugeria algo em suas palavras.
-Pai, você não...
-Sim, eu já. E não me leves a mal.
-Pai!
Ele riu.
-Mas, espera. Quantos anos tem Demétria?
-Ela já estava lá quando construí o labirinto, então estimo que tenha pelo menos quinhentos anos.
-Quinhentos anos?!
Ele riu novamente.
-Terei filhinhos com aquela mulher?
-Na verdade, as ninfas não podem engravidar-se de humanos. Maldição dos deuses.
-Mesmo assim. – Pensei nos momentos que compartilhei vida com ela. – Eu mordi o fruto!
Dédalo se abaixou ao chão e pegou as peles de cordeiro que havia deixado cair. Lembrei-me da perfeição de Demétria, do quão delicioso fora estar a seu lado, apesar dos pesares.
-É melhor esquecermo-nos disso e continuarmos nosso trabalho por aqui. – Ele virou-se e apontou para a casa que, pelo visto, ele próprio havia erguido sozinho. – Ou queres deixar seu velho pai bolar a nossa fuga a sós?
Não pude resistir ao convite, obviamente.

Exímio caçador, meu pai, Dédalo, abatera dois carneiros selvagens que vagabundeavam pelos campos do planalto e curiosamente existiam por ali. Um bosque carregado de árvores frutíferas diversas e de vegetais incríveis se estendia por entre riachos e pequenos cursos de água, que proviam vida e diversidade biológica ao lugar, tornando-o certamente muito mágico a meu ver, com algumas ninfas pulando e brincando de esconde-esconde. Elas se escondiam atrás de pedras lisas e barrentas, ora rindo silenciosamente, ora não se aguentando e gargalhando alto; a expressão da felicidade.
Fui atrás de alimento exatamente por lá. Acabei encontrando tomates doces e grandes como um besouro Hércules, pepinos levemente macios, uma variedade exorbitante de oliveiras, videiras, aroeiras, amoreiras, alcaparras, berinjelas frescas, pequenas frutinhas que não soube o nome e outras tantas que, de tão coloridas, suspeitaram meus instintos. Contudo, nada de macieiras por ali.
Recolhi o que consegui coletar em um cesto e voltei à casa onde meu pai havia se instalado comigo. Encontrei-o mergulhado entre velhos papeis, com projetos de algo incompreensível para um leigo como eu. Tudo o que pude imaginar era que se tratava de uma aerodinâmica indescritível e, tendo em vista que era Dédalo quem o fazia, o projeto era indubitavelmente perfeito. A única coisa que pude perceber, logo, foi a inspiração natural dele nas formas curvas que se assemelhavam às aves canoras que habitavam a Grécia desde sempre.
Ele observou-me com graça e sorriu perante minha curiosidade superficial.
-Quer saber o que é isto? – Apontou o monte de projetos sobre a mesa, indicando a preciosidade da riqueza de detalhes que estavam escritos, rabiscados e apagados neles. – Já pensou em voar como um pássaro, meu filho?
Espantei-me com a pergunta.
-Para falar a verdade, já. – Ele riu com minha resposta. – Sonho constantemente em transfigurar-me como Apolo, alcançar os céus como um pássaro. Livre.
-Pois então terá uma surpresa especial. – Revirou os montes e guardou os papeis debaixo de uma pedra. Pegou meus braços e me guiou a outro cômodo, onde uma ceia mediterrânea ansiosamente nos aguardava.

Após nos deliciarmos com o banquete regado não sei como a vinho grego, decidi não perder o foco espartano que corria em minhas veias, e pus-me a exercitar meus músculos correndo por entre as campinas singulares que desabrochavam por ali.
Passei por entre árvores que abrigavam dríades campestres, saltitando e cantando a meu lado músicas de melodias singelas, dando-me fôlego para prosseguir correndo, ao passo que eu suspirava cada vez mais em virtude da perda de Demétria. Balancei a cabeça para afastar as lembranças que corroíam minha mente aos poucos e deixei-me levar pelas néfeles lindas que insistiam em tocar-me até mesmo em lugares inapropriados, arrepiando inclusive os cabelos aparados que recobraram o crescimento.
Afastando-me um pouco dos bosques, pude perceber a diversidade de vida que inundava o planalto e compartilhei o espaço que tinha desde com carneiros a frangos selvagens, espantosamente educados, e alcancei uma formação lacustre digna de crineias que vivem pelas fontes de toda a Grécia.
Bebi da fonte e afastei-me lentamente das moças nuas que me seduziam sob o arco-íris que se formava pela passagem da luz entre as gotas respingadas da cachoeira, uma linda e maravilhosa formação típica de Íris.
Retornando à casa, mais tarde, pude deparar-me com meu pai absorto em seus pensamentos, rente à uma armação estranha e nova, inédita para mim. Ele percebeu minha presença sem eu me aproximar o bastante para tal.
-Ícaro! Venha ver sua surpresa! – Abarcou uma veste armada bem feita, levantando-a contra o sol do fim de tarde, vermelho-alaranjado. – Ponha logo! – Dirigiu-se a mim, estendendo a veste alada às minhas costas, pondo-a sobre meus ombros.
Aparentemente frágil, ela revelou-se exímia e ágil em meu corpo, com amarras de couro bovino se adaptando facilmente às minhas curvas lombares.
-Enquanto você não estava aqui, planejava isto com afinco. – Apertou um pouco do lado direito, fazendo-me sentir cócegas.
-Penas? – Questionei, ainda sentindo o roçar de pequenas pontas fofas sobre minha pele.
-Certamente! – Ele levantou duas alças também encouraçadas e afivelou-a sobre meu abdômen. – Abati dois gansos silvestres em uma lagoa próxima daqui. Usei as penas junto à cera de abelhas para grudá-las na armação. – Estavam seguras as amarras abdominais. – Firmes? – Ele tocou na fivela que as segurava, olhando para todos os pontos do conjunto e procurando erros e vazios que poderiam prejudicar o voo.
-Sim, firme. – Respondi ainda inseguro sobre aquilo. – Achas mesmo que posso voar? – Não queria ficar desacreditado.
Meu pai se afastou um pouco, virou-se e encarou o infinito labirinto que se projetava à nossa frente.
-Eu sou Dédalo! – Abriu os braços e recebeu a luz amarela do sol. – Eu projetei tudo isto aqui e não posso projetar asas? – Gargalhou em seguida, provavelmente se sentindo um louco.
Dédalo sendo ele mesmo. Louco e seguro de si. Este é meu pai.
E eu confiava nele.

-Vamos? – Pegou-me pelos braços e seguimos até um desfiladeiro íngreme, provavelmente onde eu fora levado pela maçã dourada. – É daqui que você deve pular.

André Luiz

domingo, 3 de agosto de 2014

Apoteose de Ícaro - Parte 2


Levantei-me com uma dor irrelevante nas juntas intercoxais e resfoleguei um líquido que poderia ser sangue, visto que não conseguia enxergar nada além do pretume do escuro à minha frente. Com a coluna ereta, segui por alguns metros sentindo a lama viscosa que abrogava minhas esperanças de um dia retornar à Esparta. O caminho curto que tinha para seguir repartira-se em dois, e eu já presumira a dificuldade que teria para sobreviver ali.
Sobre o labirinto, meu próprio pai, Dédalo, contou-me certa vez que este era amaldiçoado pelos deuses. Por conta disso, era tão instável que praticamente era único para cada pessoa, e que fora planejado para ser intransponível. Contudo, uma figura conhecida da família possuía a passagem para o fim do labirinto: Ariadne.

[Todavia, era fugira com o amante cerca de dois dias antes de me prenderem e, para meu desespero, largou o precioso fio condutor dentro do labirinto, ao relento.]

A parede sólida confundia meus sentidos, com um misto de pedras de séculos distintos; um lodo milenar e gosmento; um cheiro de mofo que me causava tonturas e uma sensação fria que enlouqueceriam qualquer um.
Pisei deliberadamente no chão, sem ao menos acanhar-me com o que poderia encontrar. Jurei por Ares que iria rever meu pai ao menos mais uma vez antes de dirigir-me aos campos elísios. Impulsionei os dedos no solo molhado e joguei o corpo pela frente. Eu estava acérrimo, firme em meu objetivo. Abjurei de meu treinamento metodicamente militar e usei dos instintos humanos de sobrevivência. Sabia que os túneis eram imensos, mas mutáveis de acordo com o êxtase demoníaco que cada um nutria. Por isso, eu já esperava surpresas inesperadas.
Pus o dedo na boca, deixando que a quente saliva se apoderar dele e em seguida coloquei-o no alto da cabeça, respirando pausadamente e mantendo o controle sobre minha mente. Esta técnica poderia ser eficaz naquele lugar assombroso. Senti uma tênue corrente de vento passar pela mistura na ponta do indicador, indicando-me o sentido que passeava o vento. Descoberto o caminho, já sabia o que fazer.
Corri o mais rápido que pude, sem pestanejar.

O treinamento militar espartano – O melhor de todos – concebeu-me tamanha destreza e domínio corporal que eu era suficientemente capaz de debandar em corridas épicas, por duas ou quatro horas incessantemente sem me esgotar, parando às vezes para curtir a paisagem, mesmo que no escuro. Após cerca de três horas e meias respirando lodo e praticamente engolindo a melancolia asquerosa da escuridão, pude enxergar uma luz no fim do túnel.

Finalmente pude ver o azul completo do céu sobre minha cabeça, restringindo-se a uma tela azulada com pingos brancos malfeitos, quase vazios; nada além de pássaros ao longe para compor a paisagem celestial, voando sem saber o que se passava por debaixo de seus corpos aerodinâmicos. Os vais e vens de aves brancas indicavam-me que a vida ainda me aguardava para uma morte cruel, sozinho e solto no meio de um labirinto.
Além da luminosidade revigorante, o cenário do lado de fora daquele antro negro era muito mais atrativo, sem deixar de ser misterioso: A lama cedia lugar à uma grama verde, fina como uma relva, de onde vinham não mais vermes e pragas, mas sim seres cilíndricos, marrons, e que deglutiam os grãos de terra com prazer; filhos de Gaia. Nas paredes - Que deixaram de ser pedras para se tornarem um emaranhado de trepadeiras – cresciam samambaias e outras plantas de caules aéreos, produzindo um ecossistema muito maior do que o encontrado no interior dos úmidos túneis pelos quais eu passara.
As folhas destas plantas eram um caso à parte, visto que estendiam-se rumo ao centro do caminho que se estendia e se alargava à minha frente, roçando em minhas vergonhas desnudas e no resto de meu corpo descoberto, gerando um êxtase curiosamente prazeroso, seduzindo-me a continuar na corrida.
Todavia, a sensação de liberdade era tão falsa quanto chuva no tártaro. Eu sentia que estava livre, mas não estava; ao menos não como desejaria estar.
Aos trancos e barrancos, alcancei uma pequena elevação, uma colina graciosa de onde pude ver as terras do labirinto se estendendo quase que infinitamente, até onde nem mesmo Zeus poderia ver, sabe-se lá para adiante dos estábulos de Apolo. Recostei-me em uma única árvore que brotara ali, já carregada de suculentas maçãs e radiante em sua coloração verde acobreada como efeito do sol que já se punha no horizonte. Deliciei-me com um banquete vegano monofrutífero, do qual pude saborear do único fruto daquela terra, até o crepúsculo magnífico dos deuses que encerrava o dia e iniciava a noite por toda a Grécia.
A grama fofa foi se aproximando cada vez mais de meus cabelos que tornavam a crescer, incentivados pelo ritmo anormal daquele lugar, e as finas folhas embalaram meus suspiros noturnos, derrubando em sonhos aquele brutamonte espartano que um dia eu fora.

Acordei com um doce sopro aromático me persuadindo a despertar, junto a um calor acolhedor vindo do sol que me cumprimentava amigavelmente. Abri as pálpebras lentamente, ainda pendendo entre o que era sonho e realidade, e aos poucos foi se focalizando algo que marinava meu corpo estendido na relva; quando sob a sombra fresca da macieira as folhas verdes dançavam ao som do vento matinal, deixando-me estagnado observando-as.
-Já acordou? – Fui surpreendido por uma voz feminina que interveio em meus ouvidos, seguida por uma figura angelical de uma graciosa dama, que parecia tremular sobre os raios iluminados, e aparecia para mim como uma figura alva e fluida, quase um sopro primaveril trazendo-me cheiro de maçã.
Parecia-me familiar, mesmo que o aroma frutífero me entorpecesse de tal forma que me desviava inconscientemente do assunto. Concentrei-me no rosto linear e delicado da dama.
-Você. – Ressabiado, estendi as mãos para certificar-me de que era real. Encontrei uma carne macia e uma pele lisa como pêssego. – Você...
A moça riu, e respondeu-me com simplicidade.
-Demétria. – A garota sorriu novamente, pura e delicada.
-Deméter? – Pensei logo na deusa da agricultura, como se eu fosse honrado por essa visita; principalmente recordando-me das histórias sobre as aparições da olimpiana.
-Não. Demétria. – A garota me corrigiu, arquejando os braços fluidos como um vapor denso, saltitando alegremente a meu redor e voltando com uma bandeja deliciosa de maçãs vermelhas assim como seus lábios; além de um pouco de ambrosia, o néctar dos deuses. – Sou uma dríade das florestas. Ou melhor, a hamadríade da macieira do labirinto. Prazer em conhecê-lo. – Estendeu a mim a bandeja, e posteriormente as mãos singelas. – Você é...
Indubitavelmente, ela era uma figura viva e impressionante.
-Ícaro. – Respondi.
-Tenho uma coisa para lhe mostrar. – Conduziu-me novamente ao chão, porém de outro ângulo da colina pequenina que abrigava a macieira solitária. Tocou-me no rosto, com um calor aconchegante e sem segundas intenções. Virou-me cerca de quarenta graus ao leste e nos sentamos na grama verde, exatamente onde ela havia planejado. – Olhe ao horizonte. – Seu rosto estava colado ao meu, e pude sentir o maravilhoso hálito de maçã que saia de sua boca recessiva de dentes brancos como a neve. – Vês algo?
Realmente, ontem quando cheguei à colina, o labirinto parecia se estender até os limites da visão; contudo, guiado pela mitológica figura campestre, pude ver algo mais no horizonte. Algo tão óbvio que quase me flagelei internamente por não tê-lo visto antes.
Fechei as pálpebras quase completamente e focalizei uma construção imponente, no estilo gregoriano, com colunas rústicas se erguendo simetricamente sobre um planalto suntuoso. Demétria me mostrava a casa de meu pai que, segundo ela, fora construída há muito tempo, e desde então ficava vazia a maioria do tempo. O detalhe crucial é que ela era exatamente igual à que vivíamos, eu e meu pai, em Esparta.
Olhei para a dríade fixamente, que sorria e cantarolava uma música suave, tocando minha alma através de uma melodia romântica, exercendo leve pressão sobre meu coração; que ficou indeciso exatamente quando pude ver seu olho brilhante por detrás dos cabelos loiros. Ela retribuiu o olhar amavelmente e sorriu para mim um sorriso tão bonito quanto a luz do sol quando nasce no horizonte.
Meus pulsares ritmados dentro do peito aumentaram repentinamente, como se uma centelha se acendesse em meu cerne.

Demétria continuava no lugar, desta vez olhando par ao infinito e pensando em sabe-se lá o quê, com uma expressão bucólica. Um aroma de chá correu o ambiente e entranhou-se pelo ar que eu respirava. Era chá de maçã.
Nunca fui de apegar-me ao coração e os sistemas espartanos não nos permitiam fazê-lo, mas uma flor parecia brotar nos confins de minha mente, linda e alva, delicada e forte ao mesmo tempo, com os brotos minúsculos e rosados trançando caminhos imaginários em meu peito, atraindo polinizadores vindos diretos do coração. Estes, zanzavam e visitavam uma por uma, fazendo a vida acontecer. Estes mesmos, passeando por ali, fizeram nascer em mim um desejo inclausurável.
Fui de encontro aos lábios rosados e beijei-a ternamente, assim como dois jovens que descobrem o amor, com meu coração derretendo-se e passando do ferro para algo muito mais humano. O beijo, além do sabor do amor, tinha um sabor de maçã: Delicioso.
Ambos coramos, ainda com os lábios grudados. Demétria respirava felicidade, em sintonia com meus sentimentos. Já diziam os sábios gregos: “A felicidade é a vocação do ser humano. Nascemos para sermos felizes, e a tristeza é somente um acidente de percurso, totalmente evitável.”.
Decidi deixar passar tudo aquilo que eu acreditava e joguei-me de cabeça no amor.
Acabei estatelando-me ao chão.

A linda jovem por quem eu me afeiçoara e que me trouxe lágrimas contidas de alegria começou a vaporizar-se no ar a meu redor, escapando-me às mãos quando tentei ater-me a seu corpo.
-Não! – Pus as mãos em um gás aromático, preso em um corpo amorfo; ansioso por tocá-lo mais uma vez que fosse. Para meu delírio geral, os olhos acastanhados foram se afastando mais e mais, sumindo ao som de uma música triste e melancólica vinda do fundo de nossas almas, à sombra de um amor impossível entre um humano e uma dríade.
Desapareceram-se as curvas, os olhos vivos e marcantes; a voz doce. Restou intacta apenas a macieira centenária.
Abracei-a como se adiantasse de algo.
Estava quente, mas não era suficiente para transmiti-me o fervor de Demétria. Pela primeira vez na vida, os deuses gregos viram um espartano chorar um choro tão puro, sincero e sofrido.

Após mais algumas horas de lamentações, encostado na árvore delicada, acariciando a casca forte - Porém fina -, a única coisa que consegui fazer foi virar-me em direção à casa visível no horizonte, vendo que nada mais podia fazer acerca daquele amor amaldiçoado pela vida. Iniciei uma descida sofrida pela colina.
Neste exato momento, eis que cai ao chão uma fruta dourada como os cabelos de Demétria, linda assim como ela; que rolou instantaneamente, descendo acelerada ladeira abaixo. Segui-a de perto. Dez minutos depois e entranhávamo-nos juntos novamente no labirinto, eu e a maçã animada, seguindo um caminho que somente ela conhecia.
O sol começara a sumir lentamente, tendo em vista que nos afundávamos no labirinto, por entre as folhas densas das verdadeiras árvores que cresciam nas paredes do labirinto, em um lugar onde as samambaias eram as deusas; o escuro sufocante um titã; e eu um mero espartano.
Suprimi um suspiro assim que a fruta estagnou-se à encosta de uma subida íngreme e sinuosa, afã das cabras montanhesas, que estava encoberta por uma espessa névoa, uma cerração que insistia em permanecer ali; razão essa pela qual eu não conseguia visualizar nada no topo.

A maçã dourada partiu-se sozinha ao meio, revelando-me que aquele era o local por onde eu deveria subir. Resolvi que o melhor a fazer era começar logo aquela escalada, que já começara de forma errada. Somente Zeus sabe o que pode nos acontecer.