Pedras e tropeços depois, além
de gotas de suor que lambiam meu rosto e insistiam em desmascarar meu corpo nu,
e eu havia chegado ao cume do planalto rochoso.
-Ícaro! – A voz soava-me
familiar. Pude, por conseguinte, enxergar seu dono ocupado com peles de
carneiros para secar ao sol, um velho ranzinza apesar de suportar um ego
extremamente engenhoso. Depois deste primeiro contato visual, tive a certeza de
quem era o dono da voz rouca e cansada.
-Pai! – Abracei-o com garra.
Pela segunda vez em suas eternas vidas, os deuses viram um espartano chorar,
desta vez de alegria.
Um não, dois deles.
E nossa reunião tão aguardada
passou-se lentamente, ambos despidos como viemos ao mundo e felizes por termos
nos encontrado. Não mais importava-nos as vergonhas saltitantes; somente a
felicidade do reencontro entre pais e filho.
Abraçamo-nos ternamente até que
resolvemos compartilhar nossas aventuras durante o período em que estivemos
separados. Contei sobre o julgamento, a parte que eu não sabia os motivos de
minha condenação, os abusos dos atenienses pervertidos, as garotas da ágora que
riam de meu corpo nu e todas as outras experiências que passei pelo labirinto
que ele mesmo havia construído; cujo estávamos presos naquele momento.
Acabei omitindo para meu bem a
parte da interação orgânica com a dríade da macieira, Demétria - apesar de
lembrar-me com carinho dela – já que nas lendas antigas nos dizem que é um mau
agouro relacionar-se tão intimamente com uma hadríade.
Contei somente sobre a maçã
dourada que rolara incessantemente e guiara-me até aqui.
Dédalo, meu pai, ficou
maravilhoso e logo depois de ouvir minha maluca e mirabolante história, tocou-me
no ombro e disse suavemente em meu ouvido palavras que soaram como líras e
cítaras afinadas no theatro graeco, que,
todavia, fincaram como espadadas em meu peito.
-Eu construí esse labirinto. Eu
sou seu pai. - Parou momentaneamente, e pude sentir seu braço se apertando
sobre meu ombro, sua respiração sobre minha orelha e sua barba roçando nela. Deixou-me
com o coração na boca e sufocou-me lentamente aquele silêncio mortal. – Sei
sobre Demétria, não tente me esconder nada.
Fiquei em choque, mas ele me tranquilizou
assim que percebeu meu estado emocional. Abraçou-me novamente em sinal de
consolo, e pude sentir suas preocupações paternas se abaterem sobre mim.
-Não se preocupe meu garoto, a
maçã é o fruto proibido e, de tão prazeroso e gostoso de provar, seduz aquele
jovem que passar por lá. - Sorriu e mordeu os lábios. Olhou para mim e
prosseguiu cautelosamente. Devo confessar que Demétria era muito bonita...
Deixando tudo ao relento, pude
entender que Dédalo sugeria algo em suas palavras.
-Pai, você não...
-Sim, eu já. E não me leves a
mal.
-Pai!
Ele riu.
-Mas, espera. Quantos anos tem
Demétria?
-Ela já estava lá quando
construí o labirinto, então estimo que tenha pelo menos quinhentos anos.
-Quinhentos anos?!
Ele riu novamente.
-Terei filhinhos com aquela
mulher?
-Na verdade, as ninfas não podem
engravidar-se de humanos. Maldição dos deuses.
-Mesmo assim. – Pensei nos
momentos que compartilhei vida com ela. – Eu mordi o fruto!
Dédalo se abaixou ao chão e
pegou as peles de cordeiro que havia deixado cair. Lembrei-me da perfeição de
Demétria, do quão delicioso fora estar a seu lado, apesar dos pesares.
-É melhor esquecermo-nos disso e
continuarmos nosso trabalho por aqui. – Ele virou-se e apontou para a casa que,
pelo visto, ele próprio havia erguido sozinho. – Ou queres deixar seu velho pai
bolar a nossa fuga a sós?
Não pude resistir ao convite,
obviamente.
Exímio caçador, meu pai, Dédalo,
abatera dois carneiros selvagens que vagabundeavam pelos campos do planalto e
curiosamente existiam por ali. Um bosque carregado de árvores frutíferas
diversas e de vegetais incríveis se estendia por entre riachos e pequenos
cursos de água, que proviam vida e diversidade biológica ao lugar, tornando-o
certamente muito mágico a meu ver, com algumas ninfas pulando e brincando de
esconde-esconde. Elas se escondiam atrás de pedras lisas e barrentas, ora rindo
silenciosamente, ora não se aguentando e gargalhando alto; a expressão da
felicidade.
Fui atrás de alimento exatamente
por lá. Acabei encontrando tomates doces e grandes como um besouro Hércules,
pepinos levemente macios, uma variedade exorbitante de oliveiras, videiras,
aroeiras, amoreiras, alcaparras, berinjelas frescas, pequenas frutinhas que não
soube o nome e outras tantas que, de tão coloridas, suspeitaram meus instintos.
Contudo, nada de macieiras por ali.
Recolhi o que consegui coletar
em um cesto e voltei à casa onde meu pai havia se instalado comigo. Encontrei-o
mergulhado entre velhos papeis, com projetos de algo incompreensível para um
leigo como eu. Tudo o que pude imaginar era que se tratava de uma aerodinâmica
indescritível e, tendo em vista que era Dédalo quem o fazia, o projeto era indubitavelmente
perfeito. A única coisa que pude perceber, logo, foi a inspiração natural dele
nas formas curvas que se assemelhavam às aves canoras que habitavam a Grécia
desde sempre.
Ele observou-me com graça e
sorriu perante minha curiosidade superficial.
-Quer saber o que é isto? –
Apontou o monte de projetos sobre a mesa, indicando a preciosidade da riqueza
de detalhes que estavam escritos, rabiscados e apagados neles. – Já pensou em
voar como um pássaro, meu filho?
Espantei-me com a pergunta.
-Para falar a verdade, já. – Ele
riu com minha resposta. – Sonho constantemente em transfigurar-me como Apolo,
alcançar os céus como um pássaro. Livre.
-Pois então terá uma surpresa
especial. – Revirou os montes e guardou os papeis debaixo de uma pedra. Pegou meus
braços e me guiou a outro cômodo, onde uma ceia mediterrânea ansiosamente nos
aguardava.
Após nos deliciarmos com o
banquete regado não sei como a vinho grego, decidi não perder o foco espartano
que corria em minhas veias, e pus-me a exercitar meus músculos correndo por
entre as campinas singulares que desabrochavam por ali.
Passei por entre árvores que
abrigavam dríades campestres, saltitando e cantando a meu lado músicas de
melodias singelas, dando-me fôlego para prosseguir correndo, ao passo que eu suspirava
cada vez mais em virtude da perda de Demétria. Balancei a cabeça para afastar
as lembranças que corroíam minha mente aos poucos e deixei-me levar pelas
néfeles lindas que insistiam em tocar-me até mesmo em lugares inapropriados,
arrepiando inclusive os cabelos aparados que recobraram o crescimento.
Afastando-me um pouco dos
bosques, pude perceber a diversidade de vida que inundava o planalto e
compartilhei o espaço que tinha desde com carneiros a frangos selvagens,
espantosamente educados, e alcancei uma formação lacustre digna de crineias que
vivem pelas fontes de toda a Grécia.
Bebi da fonte e afastei-me
lentamente das moças nuas que me seduziam sob o arco-íris que se formava pela
passagem da luz entre as gotas respingadas da cachoeira, uma linda e
maravilhosa formação típica de Íris.
Retornando à casa, mais tarde,
pude deparar-me com meu pai absorto em seus pensamentos, rente à uma armação
estranha e nova, inédita para mim. Ele percebeu minha presença sem eu me
aproximar o bastante para tal.
-Ícaro! Venha ver sua surpresa!
– Abarcou uma veste armada bem feita, levantando-a contra o sol do fim de
tarde, vermelho-alaranjado. – Ponha logo! – Dirigiu-se a mim, estendendo a
veste alada às minhas costas, pondo-a sobre meus ombros.
Aparentemente frágil, ela
revelou-se exímia e ágil em meu corpo, com amarras de couro bovino se adaptando
facilmente às minhas curvas lombares.
-Enquanto você não estava aqui,
planejava isto com afinco. – Apertou um pouco do lado direito, fazendo-me
sentir cócegas.
-Penas? – Questionei, ainda
sentindo o roçar de pequenas pontas fofas sobre minha pele.
-Certamente! – Ele levantou duas
alças também encouraçadas e afivelou-a sobre meu abdômen. – Abati dois gansos
silvestres em uma lagoa próxima daqui. Usei as penas junto à cera de abelhas
para grudá-las na armação. – Estavam seguras as amarras abdominais. – Firmes? –
Ele tocou na fivela que as segurava, olhando para todos os pontos do conjunto e
procurando erros e vazios que poderiam prejudicar o voo.
-Sim, firme. – Respondi ainda
inseguro sobre aquilo. – Achas mesmo que posso voar? – Não queria ficar
desacreditado.
Meu pai se afastou um pouco,
virou-se e encarou o infinito labirinto que se projetava à nossa frente.
-Eu sou Dédalo! – Abriu os
braços e recebeu a luz amarela do sol. – Eu projetei tudo isto aqui e não posso
projetar asas? – Gargalhou em seguida, provavelmente se sentindo um louco.
Dédalo sendo ele mesmo. Louco e
seguro de si. Este é meu pai.
E eu confiava nele.
-Vamos? – Pegou-me pelos braços
e seguimos até um desfiladeiro íngreme, provavelmente onde eu fora levado pela
maçã dourada. – É daqui que você deve pular.