Jô Soares é um jornalista
respeitado e bastante polêmico. Mas é com certeza um ícone da literatura
brasileira, e faz questão de imprimir sua marca nos textos que produz. Em “O
Xangô de Baker Street”, mantém sua irreverência e espontaneidade, brincando com
a história e a ficção de tal forma que o leitor mais atento acaba
apaixonando-se pelo contexto em que Jô nos insere.
A trama se passa num Brasil
imperial tentando mostrar-se modernizado, com suas vielas enormes e sua
característica cosmopolita. Porém, mesmo com Dom Pedro e suas incontáveis
tentativas de ressaltar os valores da terra americana, os barris de excremento
carregados pelos negros africanos e as centenas de cuspideiras espalhadas pela
orla não são tão agradáveis aos estrangeiros desacostumados ao fervor do
Brasil.
Sarah Bernhardt é uma atriz de
renome vinda da França para uma temporada de apresentações nos teatros
cariocas, e causa rebuliço no povo quando passa pela avenida em seu carro
aberto, ostentando fama.
Contudo, a arte que Pedro tanto
buscava trazer para seu império encontra-se ameaçada pelo sumiço de Canto do
Cisne, um violino Stradivarius pertencente à elite imperial e segredada a D.
Pedro. Uma peça rara que encontra-se em mãos erradas.
Através desta problemática, Pedro
não vê outra alternativa a não ser convocar as autoridades policiais e reportar
o furto do objeto. Mas o delegado Mello Pimenta encontra dificuldades, visto
que, em tese, o violino não era para existir — e o imperador sabia disso.
Ao mesmo tempo, alguém encontra uma
vítima indefesa perambulando pelas ruelas da capital e resolve aproveitar-se da
situação. Rasga sua garganta e deleita-se com o sangue que escorre até o chão.
Sentir o cheiro da morte lhe traz sensação de dever cumprido. Um dever de louco
que busca manter a todo custo. Como presente, arranca dela a orelha. Um par de
recordações. Uma conta em um colar macabro. E uma corda do Stradivarius
atravessada nas intimidades.
O mistério mostra-se indecifrável
até mesmo para o experiente Mello Pimenta. Pedro resolve convocar, por sugestão
de Sarah, o famoso detetive londrino Sherlock Holmes, que traz de companhia seu
fiel escudeiro Watson. Juntos, os dois atendem ao pedido e enfrentam a viagem
ao Brasil, cheios de curiosidade quanto à nova terra.
“PARA O VIAJANTE que vinha pelo mar, era um deslumbramento a vista da
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Todo o litoral, adornado por uma
vegetação exuberante, cobria-se de coqueiros, sapucaias, muricis e árvores
jamais sonhadas por mentes europeias. Assim que o navio cruzava a barra e
entrava na baía da Guanabara, entre a ilha do Governador e o Pão de Açúcar, o
navegante começava a ver os bairros de Botafogo, Catete e Glória, que já
mostravam algumas construções de porte. As águas ficavam coalhadas de pequenas
embarcações que iam acolher os vapores, com seus marinheiros lançando gritos de
boas-vindas. Entre os morros do Castelo e de São Bento, percebiam-se, ao fundo,
os telhados do centro da cidade, porém o que mais chamava a atenção de quem
chegava era a alvura das areias das praias.”
Assim, Jô Soares inicia uma
narrativa curta da investigação sobre o paradeiro do violino e do assassino em
série, não medindo esforços para prender seu leitor no mistério. Por vezes,
acho que me encontro sentado ao lado de algum dos personagens, como espectador,
acompanhando o desenrolar dos fatos.
O curioso do livro é que são
apresentados personagens históricos e figuras ilustres de nossa terra, como D.
Pedro, Olavo Bilac, Chiquinha Gonzaga, Paula Ney, Aluísio Azevedo e até mesmo
as figuras de Holmes e Watson, que sempre viveram apenas no mundo da ficção.
Cada um deles tem seus trejeitos, suas características bem marcantes, e certo
tom caricato que acredito ser uma das marcas narrativas de Jô Soares. Juntos,
os personagens dão o ar da graça ao livro e deixam-no muito mais descontraído.
Holmes é um caso a parte na
trama. O detetive inglês desmonta sua elegância e pomposidade nas terras
tropicais e faz questão de enturmar-se com o clima, a gente e os costumes
daqui. Assim, entre feijoadas, acarajés e muita caipirinha, o inglês esbalda-se
a dançar com as belíssimas mulatas e diverte-se com a excentricidade do povo
brasileiro. Jô brinca com o consagrado personagem de Sir. Doyle, trazendo-o
para uma perspectiva mais próxima da realidade e deixando-o mais humano. De
fato, o personagem mais sombrio, misterioso e incoercível da literatura inglesa,
mostra-se capaz, por exemplo, de padecer na diarreia, viciar-se na cannabis sativa e ainda arranjar tempo
para apaixonar-se por uma mulata.
O público costuma condenar este
livro exatamente por isso, porém entendo que o segredo é tentar imaginar que
tudo aquilo deixou Holmes mais humano. Deixou-o palpável, como se tivesse
realmente existido. Esta é a singularidade da narrativa de Jô Soares, com seus textos
leves e que abrangem um público-alvo considerável, desde os jovens até mesmo os
idosos. Afinal, é uma aventura policial histórica, mas com toda a irreverência
e modernidade da literatura dos dias de hoje.
André Luiz
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DADOS OBRA(SEGUNDO O SKOOB)
ISBN-10: 8571644829
Ano: 1995 / Páginas: 349
Idioma: português
Editora: Companhia das Letras
NOTA: 3,5/5