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domingo, 28 de agosto de 2016

MINICONTO - Índios

O português trouxe o espelho, uma galinha e roupas aos índios. Maravilhados, liberaram tudo, por livre e espontânea pressão. Não poderiam saber que fim aquilo ia ter.


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

MINICONTO - Postiços

     Despiu-se como sempre fazia, de corpo e alma. Fechou as cortinas e acendeu o abajur. Tirou o vestido de seda, os sapatos de salto e os apliques no cabelo. Abriu mão dos brincos perolados, do colar de ouro e da aliança de diamantes. Arrancou os cílios falsos. Pegou um algodão e molhou-o de demaquilante. Aos poucos, a tênue linha negra gravada em suas pálpebras se desmanchava conforme passava o algodão no local. Da boca, retirou o batom. Das bochechas, a base que escondia as manchas de espinhas e os corretivos que mascaravam as primeiras rugas de seu rosto. Retirou as unhas esmaltadas e bem-feitas. O sutiã de bojo e a calcinha delicada. 
     Olhou-se no espelho. Tudo nela era postiço. Até mesmo a felicidade que lhe fora entregue.


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

MINICONTO - Geleira

     Klebio sentia que derrapava às vezes. O gelo era escorregadio, e a fina camada de serração que caía na superfície não ajudava. Por fora, o bloco de gelo era somente mais uma fortaleza impenetrável, áspera e escorregadia. Cheia de perigos e segredos. Por dentro, um mundaréu de novidades e um oceano infinito esperando-o. Desde o início ele sabia que não seria fácil passear na geleira que era o coração de Marisa. 
     Mas ele decidiu encarar a aventura. 


sábado, 20 de agosto de 2016

MINICONTO - Plástico

     O barulho dos dedos arranhando o plástico fizeram-na soltar um grito de repulsa. Eram aquelas pequenas repulsas cotidianas que mais a amedrontavam. O que ela chamava gastura outros chamavam tortura. Principalmente os donos do cativeiro, que sorriam ao som do giz arranhando o quadro negro. 


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

MINICONTO - Velas

     Acabou acendendo as velas com o calor do cigarro. Não que quisesse fazer isso, mas não teve outra escolha senão as mãos congelariam de frio. Abraçou a luz e o calor confortante que vinha da vela e sentiu-se perto de sua mãe outra vez. Observou o ambiente ao seu redor, obscuro e imerso na penumbra, iluminado apenas pela fraca luz das velas espalhadas pelo chão. 
     Era a quinta vez nesta noite que o apagão tomava conta da casa. Pegou o cigarro e levantou-se da cadeira, batendo as mãos uma contra a outra e soprando-as com o bafo quente. A atmosfera tornara-se fria e macabra. Tateou o bolso em busca do celular, tentando contatar alguém conhecido que poderia estar nas redondezas. Encontrou apenas três moedas e um chiclete na metade.
     Não havia janelas no lugar, e o cheiro era de borracha queimada. Um esgar de nojo subiu por sua garganta e chegou a sua boca com gosto de bile. Nas sombras, não conseguia mensurar as dimensões da sala em que estava. 
     Aos poucos, a pupila dilatou-se tal qual um precipício, profundo e inesgotável de escuridão, e as formas ao seu redor tomaram vida. Eram centenas de milhares de pequenas criaturas, atreladas umas às outras, com os corpos redondos e roliços movendo-se lentamente como uma pluma no espelho de água. Pareciam carregadas por alguma espécie de correnteza, canalizando os movimentos para a região central do cômodo, onde o homem olhava a tudo, aterrorizado. 
     Subitamente, enxergou uma cômoda bem ao seu alcance. O brilho de seus olhos se alterou quando a pistola em cima da mesa. 
     A escuridão acabaria ali mesmo.


terça-feira, 16 de agosto de 2016

MINICONTO - Bilhete

      Abriu o papel enrolado achando que encontraria ervas ou o pó branco, a cocaína de sempre. Pensou em voltar e esbofetear o traficante quando descobriu que naquele dia não iria fumar seu baseado. Sua cabeça rodopiou quando viu que o papel embrulhado era um bilhete. Em letras tortas e em uma escrita grossa e voraz, as letras pareciam querer saltar do papel tal qual o desespero de quem as escrevera. Era um recado que desejava sair como um grito. 
      O drogado coçou os olhos enquanto as letras tomavam forma em sua mente. O raciocínio era lento e as palavras demoraram muito para surgir. O que não demorou foi a boca aberta perante o assombro. Há tempos pensava que estava sozinho no mundo.
     No papel, lágrimas secas borraram algumas letras, mas ainda podia-se ler o recado.
     "Mamãe ainda te ama. Nunca se esqueça disso".


domingo, 14 de agosto de 2016

MINICONTO - Subúrbio

     A Lua estava apina, na meia-noite da vida. As ruas do bairro estavam desertas, à exceção dos fantasmas e bêbados, que vagueavam em busca do caminho de casa. Algumas esquinas ocultavam assaltantes, debaixo das sombras das marquises e dos buracos nos muros dos terrenos baldios. Noutras, a luz do poste por vezes capturava o vulto de um gato perseguindo um rato, ou até mesmo um grupo de jovens inconsequentes andando apressado e fumando maços de maconha enrolados em papel de pão. Avioezinhos motorizados fazendo delivery de drogas; delinquientes e suas pistolas automáticas; um senhor de aparência obscura de chapéu negro na cabeça.
      As ruas e vielas formavam um labirinto indecifrável repleto de monstros e tentações.
     Luana observava os subúrbios de sua mente. Uma realidade execrável, que insistia em perdurar em seus pensamentos. 


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

MINICONTO - Sementes

     Ferdinand nunca foi de exaltar os ânimos. Mas aquele martini e os problemas da vida cotidiana o fizeram romper com sua normalidade. Era uma sexta-feira fria de agosto, num pub qualquer da capital; ele fumava um cigarro de olhos vidrados na azeitona que acompanhava a bebida. Era um mal-hábito fumar, contudo, ele sentia que o calor da fumaça entrando em seus pulmões e aquecendo-o por dentro de alguma forma o confortava.
      Infelizmente, aquele pequeno rolo de papel fora batizado com algumas ervas a mais. Ferdinand nunca saberia os porquês nem os poréns, e embarcou nas ondas que a droga trouxera. Era tudo um delírio. A garçonete de repente tornou-se uma gigantesca lagosta vermelha e dotada de uma boca sedutora. Os relógios não paravam de girar, bem como sua mente e o mundo a seu redor. Era como se ele tivesse dado um mergulho bem profundo numa piscina de arco-íris. 
     E não conseguisse sair mais de debaixo da água. 
     Lentamente, levantou-se e tropeçou num gorila que passava ao seu lado. O animal urrou e voou em cima dele, abraçando-o com força e voracidade. O homem nunca foi de exaltar os ânimos, porém não teve outra escolha. Era lutar ou morrer. E ele estava mesmo afim de voltar para casa. 

     As árvores cresciam ao redor de sua casa. Ferdinand estava vivo, de algum jeito. Mesmo apenas servisse como adubo para sementes de girassol. 


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

MINICONTO - Agitação

     A noite caía pesada sob os ombros do garoto, serena friagem que banhava seu corpo. Seus cabelos molhados balançavam ao passo que seu coração disparava mais e mais à proporção do aumento de sua velocidade. Ele não sabia do que estava correndo, apenas que a agitação era incontrolável. Urros, berros e grasnidos, seguindos de estampidos que chegavam a seus tímpanos. Sentiu então um toque aveludado nos ombros e uma onda de horror percorrer a espinha. Por um segundo, seu coração pareceu congelar. Seus olhos paralisaram-se de medo quando seu olhar se fixou no olhar de um homem sem rosto.


segunda-feira, 8 de agosto de 2016

MINICONTO - Pavão

     Lentamente, as penas do pavão foram se abrindo, revelando um esquema de cores ímpar e uma geometria natural que nenhum outro animal teve coragem de copiar. Quando Deus criou os animais, certamente estava inspirado ao desenhar o rabo do pavão. O pássaro andava em passos curtos de um lado para o outro, agitando suas penas e criando uma armadilha visual de cores e brilhos que fisgava a fêmea pouco-a-pouco. Branca como leite, de penugens alvas e um rabo pouco volumoso, de tons acinzentados, estava estonteada pela beleza arrebatadora do macho.
       - Belíssimo! Bravo! - A senhora tirou os óculos escuros e apontou para o suntuoso animal que se agitava em sua frente. 
         Abateram-no ali mesmo, depois, fizeram da cauda do pavão um belíssimo enfeite para a sala principal da mansão da madame, para que todos que olhassem para aquele conjunto de cores e brilhos se lembrassem de como a natureza é perfeita.


sábado, 6 de agosto de 2016

MINICONTO - Vencedor

     Sob a neblina das montanhas do Vale do Valdocaso, Sor Americo Worth estava rodeado de corpos espalhados pelo campo de batalha. Os aliados, os inimigos, todos estirados no chão, de olhos vazios e corações inertes. O alasão branco que Americo montara agonizava com a barriga rasgada ao meio e as tripas escorrendo por seu corpanzil. Americo levantou os olhos lentamente, ainda sentindo o calor da batalha espalhado por seu corpo e seu manto de metal. O suor escorria-lhe pela testa e um filete de sangue de seu nariz. 
     Respirou fundo e puxou o cabo da espada. Levantou-se com dificuldade. Tivera de trair todo o seu reino, seu próprio rei jazia morto aos seus pés. O corpo do monarca tombou para o lado quando a lâmina saiu completamente; o metal era bordô em toda a extensão. Era o sangue do rei em suas mãos, em seu corpo, sua alma. Era o último homem do campo de batalha. Era o vencedor.
       Agora tinha todo um reino pela frente. 


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

MINICONTO - Violino

Alisou o violino Stradivarius como e fosse o filho recém nascido. Sentiu o cheiro da madeira fresca e as ranhuras imperfeitas que a natureza trazia ao instrumento, feito artesanalmente e com muito esmero. Abraçou-o com afeto, deslizou os dedos pelas cordas ásperas de metal e vibrava junto às notas que tirava do violino. Repousou-o sobre os ombros e abriu o livro de partituras, buscou, na última folha uma lírica de nome Vita mia. Ligou o holofote e entrou no brilho da luz. "Hão de lembrar-se de mim". Pensou, antes de tocar sua última nota, seca e gélida. Um clarão invadiu seus olhos. Abriu os braços como um anjo e ascendeu aos céus, deixando uma poça bordô em seus pés. O violino que produzira com tanto esmero tornara-se um monte de ferro e madeira retorcidos.


terça-feira, 2 de agosto de 2016

MINICONTO - Aperitivo

Parou e olhou para sua presa, na esperança de que ela emitisse um ruído qualquer. Observou suas pupilas dilatadas, vazias como um precipício profundo e obscuro dentro de seus olhos. O brilho de sua pele e o calor de seu corpo lentamente se desvaneceram, bem como o sabor de seus lábios rosados que invadia sua boca. Ele sabia que não pararia por ali. Ela era apenas o aperitivo.