Em uma cidade qualquer, de um país menos importante ainda,
vivia Gumercindo. Como qualquer criança tímida de dez anos, possuía poucos
amigos e vivia como uma sombra na vida de todos.
Um dia eis que surge Clarinha, uma linda menina que tinha
acabado de se transferir para sua escola. Simpática, passava todo o seu tempo
com ele, ignorando todos os outros alunos que estavam eufóricos para receber
sua atenção. O pequeno Gumercindo se sentia aquecido com aquela luz que
irradiava dela, e de repente já não se sentia mais uma sombra.
Com o passar do tempo, acabou descobrindo muitas coisas sobre
a menina: Era nascida e criada em um circo, filha de um ex-mágico e de sua
assistente, que mais tarde decidiram abandonar a vida de espetáculos para poder
dar à ela o direito de ter uma vida normal. Mas não era isso que Clarinha
realmente queria. Desejava voltar para sua vida conturbada, viver onde
quisesse, livre; quiçá poder participar do elenco, ser uma linda bailarina que
graciosamente atravessar o perigo incalculável de uma corda bamba.
O garoto se sentia cada vez mais atraído por ela e sem
perceber, já estava apaixonado em plenos quinze anos.
Até que, certo dia, um convite inesperado surgiu: Um circo
havia se instalado na cidade. Escondidos, os dois conseguiram se esgueirar
pelas laterais e entrar na grande tenda colorida, deparando-se então com
inúmeros animais, roupas enfeitadas com paetês, lantejoulas, brocados,
rendas...
Gumercindo viu um brilho diferente nos olhos da menina. Havia
lá um fogo de desejo, ambição. Ela queria tudo aquilo da mesma forma que a Lua
deseja o Sol. No entanto se viu triste, queria dar à ela a vida que desejava,
mas isso não era possível.
Ela tinha família, uma casa, uma vida... e seus pais jamais
retornariam a um circo.
Um livre toque o tirou do transe. A menina o puxava para
andarem rapidamente. Sua intensa alegria o contagiava. Corriam como crianças
entre vendedores, animais e a própria trupe.
Sem pensar, parou subitamente e a puxou, unindo seus lábios
por um breve momento. Ao contrário do esperado, a menina não se assustou, não
fugiu. Ansiava por aquilo também.
Ficaram com os rostos colados por alguns minutos. Sorriam
muito, e ambos se dirigiam para a plateia. Seu plano já estava tramado.
Meses se passaram e Gumercindo conseguiu conquistar a
confiança de seus sogros, e vivia sempre por lá. Um dia dia, pôs sua façanha em
prática. Colocou um vidrinho de arsênico no molho de carne que estava sendo
preparado na cozinha e levou sua amada para comemorar seu aniversário
em um almoço no restaurante mais famoso da cidade. Retornando, ela se deparou
como uma casa vazia, gélida. Bem na soleira da porta pode sentir que algo
estava diferente. Gritou o nome da mãe algumas vezes e não obteve resposta.
Gumercindo a observou entrar correndo pela porta. Não demorou muito até ouvir
seu grito de pavor. Um belo sorriso apareceu em seu rosto, ela estava livre.
Dias depois, ela o
encontrou. Dizia que não tinha mais parentes, como ele previa, e que se
juntaria a um circo que estava na cidade vizinha. Nada se comparava com a
felicidade que ele sentia, nem mesmo o beijo, pois o considerava como um ato
irracional e egoísta. Gostava de vê-la feliz e isso o dava vida. Vivia por ela
e exclusivamente para ela.
Despediram-se com um aceno
de cabeça. Não conseguiram proferir uma palavra sequer. Ela se virou e foi de
encontro ao destino. De repente uma mão a pegou pela cintura, e viu Gumercindo
que a virava de encontro a ele. Seus corpos se encaixavam perfeitamente. Ele
mantinha uma das mãos entrelaçadas em seu cabelo e a outra em suas costas,
puxando-a cada vez mais para perto, como um desejo inimaginável. Ela por sua
vez segurava as duas mãos em seu pescoço e desejava que aquele momento jamais acabasse.
Ele fora seu primeiro amigo e namorado, e agora sua única família. Não queria
abandoná-lo, mas sabia que se não fugisse acabaria em um orfanato. Ele largou
seus lábios por um instante e depositou carinhosos beijos ao longo do pescoço,
voltando à sua boca novamente. Pararam um momento, ofegantes. Olharam-se nos
olhos e encostaram suas testas. Pouco tempo restava a eles. Fizeram uma
promessa de amor eterno e juraram buscar ao outro, até mesmo após a morte.
Despediram-se enfim, e foram de encontro ao futuro.
Anos se passaram e ele pôs
em prática o que prometera. Aos 23 anos e com apenas R$37,00 na carteira,
entrou para um pequeno circo que estava de passagem na cidade. Começou como
limpador de jaulas e foi ascendendo lentamente até conseguir o ofício de
palhaço. A partir daí conseguiu migrar de circo em circo em busca de sua amada,
se tornara conhecido entre as trupes pelo trabalho bem feito. Sabia que sua
Clarinha estaria lá esperando por ele.
Sua busca demorou quatro
anos, e enfim, na Suécia, conseguiu encontrá-la. Mas sua satisfação durou
pouco. Lá estava ela, sua amada, noiva de outro. Uma raiva o atingiu
imensamente. Ela pertencia a ele, somente a ele. E ao contrário do que sempre
imaginou, ela o tratava como um velho conhecido e nada mais. Era uma terrível
traição, mas ele tiraria aquele ser indesejável da vida de todos.
Passou a perceber seu alvo
avidamente. E descobrindo um dia que ele se encontrava com suas amantes em
hotéis mais simples, passou a andar armado com uma faca bem afiada. Após
um espetáculo, decidiu segui-lo. Ainda estava com seu traje de picadeiro, mas
não se importava. Entrou no hotel e conseguiu arrombar a frágil porta com
facilidade. Não conseguiu nem ao menos surpreendê-los, e os atingiu bem na
jugular. Saiu com uma intensa felicidade. Conseguira livrar sua pequena de
seres que atrapalhavam sua felicidade. O sangue escarlate escorria por sua
roupa. Mal podia esperar para ver as reações de sua querida. Ela ficaria
eternamente agradecida, acreditava.
Ele conseguiu
reconquistar o amor de Clara, e sem demora se casaram. Formavam o casal mais
belo de todos e eram invejados por muitos. Em poucos meses, a menina dos olhos
do circo já estava grávida. Gumercindo se sentia abençoado pela dádiva de Deus.
Era o ápice de sua felicidade.
Começou a perceber um amor
diferente da esposa. Ela se dedicava mais a criança do que a ele mesmo,
preferia passar o tempo conversando com algo que nem sequer havia chegado ao
mundo... Então algo passou por sua mente. Sua doce Clarinha estava se tornando
presa novamente. Precisava libertá-la e sabia como! Em meio a seus remédios,
injetava pequenas doses de antimônio. Aos poucos percebia a diferença. A vida
estava se esvaindo dela... e do feto que a sugava.
Deu um beijo
de despedida em sua testa e escutou seu último suspiro. Ela agora estava
realmente livre. Poderia fazer o que quisesse e eles ficariam juntos por toda a
eternidade. Tomou seu uísque com uma grande dose de mercúrio. Deitou ao lado de
Clara e esperou o efeito começar.
("Jéssica Stewart")
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