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terça-feira, 30 de setembro de 2014

E assim se faz fim

Colocou o casaco, marrom de botões pretos, uma gola levantada pra cima, as mangas sutilmente arrebitadas e os bolsos devidamente fechados a velcro. Logo em seguida vieram as calças, pretas e de corte singelo, um cinto branco a mantém longe de se deixar levar pela gravidade e rabiscar um enorme vexame na vida do moço. Os sapatos, marrons também, mas de couro e sola escura que estralam ao beijar o solo. Os cabelos negros são penteados para trás e o gel lhe dá uma aparência molhada e engravatada de sempre.

 Os olhos feitos em ônix estampam certa... falta de motivação. Os lábios rosados se curvam pra baixo como em sinal de "ME RENDO", a posição corporal já não exala confiança e atitude, apenas certa timidez exacerbada que a falta de autoestima lhe pregou como forma de marcar território. Abaixo dos olhos que por vezes se mostram sem brilho e enevoados tem-se alguns bolsões negros que não estão lá todos os dias, mas vinham com mais frequência à medida que era inversamente proporcional a sua vitalidade de vida. Se pedisse pra resumir sua vida em um texto ele logo diria que não precisava, ela era por si só um resumo mal feito de uma existência desventurada. "É de escolhas que se pauta a vida" disseram a ele, mas em seu caso a vida já havia feito uma, e essa era a de não lhe dar chance alguma de fazê-lo.
Quiçá encontre paz no para-choque de um caminhão em alta velocidade, ou então na ponta metálica de uma bala a pouco perdida. "NÃO" sua sorte não era tão boa assim, condenou-o com uma falta de azar maldita que lhe subsidiava a coexistir com os perigos que o levariam ao seu tão desejado fim. Coibir-lhe de ter sorrisos e felicidades durante o dia era o dever da maldição que ousava proclamar-se vida, o fazia perfeitamente, desde... Sempre. Que nudez maldita levou sua mãe a gera-lo naquele verão em São Paulo. Que rigidez desgraçada despontou em seu pai pra ajudar no serviço.
Que falácia a dela de, em seu leito de morte, dizer a ele as expelidas e esganiçadas palavras "tudo ficará bem meu querido". Não. Não ficaria. Ambos, naquela sala úmida e suja, sabiam disso, jamais ficaria bem.
Vosso belo personagem se apaixonou certa vez, ah sim. Foi pela loira de olhos azuis que o chamava de amigo, ela era magnífica, não tinha como ele não amá-la. Mas logo a vida lhe mostrou que essa não é uma regalia que ele tem direitos, mostrou-lhe que este prazer na vida não lhe pertencia, matou-a em um incêndio. Tal qual a vida que se perdera na morte dela fora seu desafeto, desapego e desencanto pela vida. Desde então é apenas um meio vivo. Vive à sombra de mágoas e suas fatídicas desventuras. “Maldita hora em que rasguei a barreira da inexistência e desbravei-me a residir esse mundo” é a sua filosofia. Coitado. Sua vida não era de fato uma vida.
Hoje ele queria mudar isso, o corvo que lhe pousa na janela dissera que ele poderia voar, prometeu-lhe asas bem como a sensação divina de usa-las. Ele estava a dois passos da derradeira janela, e o corvo lhe disse que seria belo e pleno; que seria bom, suave, que teria amor, fulgor, ardor, acalento para a alma. As asas negras do animal não o desmentiam.
Estava a dois passos da janela de seu prédio, estava no último andar de 25 outros, mas dessa vez deu um a mais.
Um...

Dois...

Três...
           
Lançou-se ao ar, e como lhe prometera o animal... ele estava alçado ao ar, mas as asas jamais apareceram, o voo jamais se concretizou. O ar lhe espancava o rosto, o chão corria até ele, a paisagem se transformara em ladrilhos cor de creme que seria seu leito de morte.
Lá embaixo, dentro de alguns segundos um som estalou, a imagem fúnebre se fez, uma visão vermelhas e rosa, um som oco e outro molhado. Seu voo não durou, suas asas não apareceram. Durante a queda o corvo lhe grasnara insanamente. E quando ele caiu lá fora o bicho, pegou um tasco de carne do desventurado e...

Mal sabia o infeliz a diferença entre um corvo e um maldito urubu.

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